Pescadores preparam a Casa do Peso, no Rio Vermelho, de onde sai o presente maior, guardado em segredo pelos organizadores
JANE FERNANDES
Os presentes serão jogados ao mar na próxima quinta-feira, mas os preparativos para a grande homenagem a Iemanjá ocupam os dirigentes da Colônia Z1, no Rio Vermelho desde o início da semana passada. Na mesma data, a ialorixá Mãe Aici, responsável pelos ritos que envolvem o tradicional festejo de 2 de fevereiro, deu início às obrigações religiosas que precedem o momento.
Para eles, a vida só voltará ao normal quando o oceano envolver com suas ondas os 300 balaios repletos de perfumes, espelhos, flores e enfeites levados para a vaidosa rainha do mar.
Enquanto o presidente da Z1, Eulírio Menezes, confessava perder o sono pensando em tudo que ainda precisavam ser providenciados, Mãe Aici - Valdelice Maria dos Santos, do terreiro Odé Mirim Oxossi - se preparava para mais um ritual.
No Rio Vermelho, as preocupações giram em torno da montagem do barracão, da pintura da Casa de Iemanjá também chamada de Casa do Peso , mas no barracão localizado na Federação tudo tem um cunho espiritual.
Os caminhos seguem em paralelo encontrando-se apenas na madrugada do dia 2, quando filhos-de-santo e pescadores vão ao Dique do Tororó presentear Oxum. Assim é feito todos os anos, as primeiras reverências vão para a orixá que domina os rios.
Elas sentem ciúmes, acredita a ialorixá, explicando a necessidade de presentear as duas senhoras das águas.
Já o tesoureiro da colônia de pescadores, Gilson dos Santos, confessa não saber o porquê de agradar a Oxum durante os festejos dedicados à divindade que reina nos mares. Quando eu cheguei por aqui, há 30 anos, já era assim, exclama, certo de que não é bom mexer nessas tradições.
Então quando os rojões pipocarem no ar fazendo a alvorada do Rio Vermelho, às 5 horas, os balaios dados a Oxum já estarão imersos no Dique. É nesse momento que o pessoal da Z1 vai por fim ao mistério envolvendo o presente dado pela colônia a Iemanjá.
Presente - Por enquanto, Gilson dos Santos adianta que a peça já está pronta, mas não dá dicas sobre seu formato. É do mesmo artista que fez nos últimos três anos, confirma.
Ao longo das três décadas na qual tem acompanhado o cortejo marítimo incumbido de arriar os balaios no mar, a cerca de oito quilômetros da costa, ele disse ter gostado de todas as esculturas feitas especialmente para a divindade, que é também chamada de Janaína. Já teve golfinho, baleia, lagosta e até mesmo réplica em miniatura da imagem da orixá.
A festa da matriarca de todos os orixás guarda uma particularidade quanto ao seu vínculo com o catolicismo. Embora ela seja sincretizada com Nossa Senhora da Conceição, as comemorações acontecem em datas diferentes.
Enquanto os católicos fazem reverências no dia 8 de dezembro, os seguidores das religiões afrobrasileiras presenteiam Iemanjá no dia 2 de fevereiro. Os ritos são feitos de acordo com os preceitos da nação Ketu, mas o terreiro de Aici segue a linha de Angola.
Para ela não há nenhum problema nisso, assim como os autodeclarados católicos apóstolicos romanos Menezes e Santos recebem tranqüilamente as bênçãos do candomblé. Ele ainda lembra do tempo em que o roteiro da devoção dos pescadores pela orixá - que também zela pelos portos de Havana, em Cuba - era completada por uma missa na Igreja de Nossa Senhora Santana, ali mesmo no Rio Vermelho.
Depois teve um desentendimento e foram mudando, conta com o conhecimento de quem acompanha o 2 de fevereiro há 60 anos.
Desde então, o retorno à terra firme é marcado pelo jogo de búzios, feito para revelar se Iemanjá gostou do presente. Segundo Santos, nesses 30 anos no qual foi ao mar levando o presente principal na embarcação Rio Vermelho, a resposta de Janaína tem sido sempre satisfatória.
Ele nem bota muita fé nessa estória de que dias depois os mimos rejeitados aparecem na praia. Tem gente que vem e joga na beira do mara, aí se a maré tiver contrária volta tudo, justifica com simplicidade.
Para a ialorixá Aici, a questão não é tão simples assim. Ela concorda que alguns colocam suas oferendas no lugar errado, mas não descarta a possibilidade de Iemanjá devolver à terra o que não tenha lhe agradado.
Sesp credencia ambulantes
Os ambulantes interessados em trabalhar durante a Festa de Iemanjá podem se cadastrar na Secretaria Municipal de Serviços Públicos (Sesp) até a próxima quarta-feira. Quem vai vender bebidas em caixas de isopor precisa pagar uma taxa de R$ 20 e os que vão montar bancas ou tabuleiros terão de desembolsar R$25 pela licença.
Para ocupar uma das 640 vagas reservadas para esses vendedores é necessário ir até a Sesp (Rua 28 de setembro, 26 - Baixa dos Sapateiros) munido de carteira de identidade, CPF e comprovante de residência.
Para ocupar uma das 55 barracas padronizadas montadas pela prefeitura, os barraqueiros precisam ir ao local para pegar o Documento de Arrecadação. Nesse caso, a licença custa R$ 150 e só poderá ser solicitada pelos barraqueiros indicados na lista enviada pela associação da categoria. Segundo Lia Mota, assessora técnica da Sesp, fiscais da secretaria atuarão em toda a área da festa fazendo o ordenamento dos ambulantes.
Já os funcionários da Limpurb entrarão em cena a partir de 1 hora do dia 3 para cuidar dos serviços de limpeza. Além de cuidar da arrumação pós-festa, a Limpurb também ficará responsável pela instalação de 122 sanitários químicos, 41 masculinos e 81 femininos.
A segurança dos participantes da festa que costuma durar o dia inteiro, principalmente no Mercado do Peixe e vizinhanças, será feita por um efetivo de mil policiais. A Polícia Militar também vai auxiliar a manutenção das barreiras de tráfego que serão colocadas nas ruas Conselheiro Pedro Luiz e Oswaldo Cruz.
Devoto gaúcho restaura imagem
Na primeira vez que o babalorixá Paulinho Xoroquê viu a imagem de Iemanjá mantida na sede da Colônia Z1, ela estava sem braços e com a pintura danificada. Diante da situação, ele, que sempre fez festa para a Rainha do Mar no seu terreiro lá em Porto Alegre (RG), logo alertou os pescadores locais sobre a necessidade de providenciar uma reforma.
Para sua decepção, quatro meses depois nada havia mudado. Acho que faltou interesse em cuidar, lamenta.
Inconformado com a situação, Pai Paulinho pediu licença para levar a imagem para sua cidade e cuidar da restauração. Os pescadores da Z1 não ofereceram resistência e na última quinta-feira receberam a Iemanjá de volta.
Para homenageá-la, o babalorixá gaúcho trouxe 80 rosas brancas, crisântemos, perfume e velas. Acho que assim estou trazendo um pouco da energia e da fé do lugar de onde venho, acredita. De agora em diante, sua intenção é vir a Salvador pelo menos três vezes ao ano para cuidar da imagem da orixá celebrada em 2 de fevereiro.
Fé em Iemanjá e fartura na pescaria
Pouco sei sobre a história da festa, pois não me interessa. O mais importante é a fé que nós temos, confessou o tesoureiro da Colônia Z1, Gilson dos Santos. Apegado a essa convicção, ele não se preocupa em verificar a verdadeira data de início da tradição.
Embora a versão mais aceita aponte para 1924, existe a possibilidade de os pescadores do Rio Vermelho terem pedido as bênçãos de Iemanjá em 2 de fevereiro de 1929.
Quanto ao motivo, no entanto, não restam dúvidas. Os homens do mar lançaram presentes no meio das ondas para vencer uma temporada de rede vazia. Felizes com a melhora na pescaria, eles nunca mais abandonaram o hábito de agradecer de forma festiva e cheia de fé ao sustento que o mar lhes dá por todo o ano.
Se deixarem de dar o presente, o mar pode virar e virar muita coisa aqui na Bahia, imagina a ialorixá Aici, responsável pela parte religiosa do evento.
O fato é que muita coisa mudou nessas mais de oito décadas, mas nunca ninguém ousou deixar Iemanjá sem presentes. Apesar de a festa do Rio Vermelho continuar sendo a maior de todo o País - atraindo gente da ilha e do interior -, as oferendas são entregues em vários outros pontos.
Santos também prefere não fazer perguntas sobre a origem dessa divindade representada em frente à sede da colônia como uma sereia de cabelos negros. Ele sabe que seu nome está escrito no panteão de deuses africanos, mas não imagina como a deusa negra de seios fartos, associados à fertilidade, ganhou um rabo de peixe.
De acordo com artigo escrito pelo historiador Cid Teixeira, a representação da orixá foi influenciada pelos seres da mitologia oriunda da Europa Medieval, onde figuram as sereias.