Mãe Lúcia, do Terreiro São Jorge Filho de Goméia, viajou três vezes para Angola
Ao contrário da viagem forçada nos porões dos tumbeiros (embarcações destinadas ao comércio de escravos), a necessidade de fortalecer elos - subjetivos ou não - faz os afrodescendentes atravessarem o oceano em busca das origens no continente africano.
A religiosidade, o interesse acadêmico e a possibilidade de parcerias por meio do intercâmbio cultural são algumas das motivações para quem faz o caminho inverso dos antepassados.
A contradição entre a história que permeia o imaginário popular e a vivência no Terreiro São Jorge Filho da Goméia fez Mãe Lúcia das Neves, a mameto Kamurici e líder espiritual do templo, visitar Angola três vezes.
"No candomblé aprendi que nkissi é tudo, que sou filha de reis e rainhas e que temos uma cultura forte e rica. Mas não via essa representação e reconhecimento fora do terreiro", contou.
O templo localizado no bairro de Portão, em Lauro de Freitas, é de tradição Angola, o que justifica as viagens para a cidade de Benguela e em Barra de Kwanza. "A primeira coisa que fiz lá foi tirar os sapatos, pedir agô (licença) e que as energias que eu cultuo me permitissem encontrar as respostas que precisava", disse.
Permissão concedida, foram frequentes as situações de identificação. "O jeito como as pessoas vivem parece com o nosso, o que me fez sentir parte daquele universo. Compartilhamos a mesma energia", disse a sacerdotisa.
No âmbito religioso, as relações se estreitaram mais. "Visitei lugares importantes. Quando cantava em kimbundu (uma das línguas da família bantu), eles respondiam e me reconheceram como sacerdotisa. Alguns rituais são os mesmos, dando a certeza de que fazemos certo aqui", contou. Como uma das similaridades, cita a festa de Kianda, que ocorre em Luanda, e parece com a que é feita para Kaiala (Iemanjá na tradição ketu).
Realidade
As imbricações também marcaram o diretor do Instituto de Mídia Étnica (IME) - organização social que realiza projetos sobre mídia, tecnologia e relações étnicas- Paulo Rogério.
"Na Nigéria, fiquei encantado com o akará (massa de feijão moída com temperos servida frita com camarão ou peixe) vendido na rua. Lembra o acarajé. A forma como as pessoas ocupam a via pública, como as feiras livres, também parece com a gente", diz.
Paulo também conheceu a África do Sul, Gana e Moçambique desenvolvendo projetos que visam a conexão com o continente e buscando parcerias. Um deles é o Panáfricas, uma série televisiva sobre o panafricanismo e a diáspora africana.
"Pouco se sabe da realidade desses países. Para além da história africana conhecida, há o atual crescimento econômico da Etiópia, o desenvolvimento tecnológico no Kênia. Na África do Sul, por exemplo, há o programa de Empoderamento Econômico dos Negros - Black Economic Empowerment (BEE) - que consiste na inserção de negros em cargos de poder de decisão nas empresas", contou.
A oportunidade de ampliar pesquisas acadêmicas também levou o doutor em antropologia e babalorixá do terreiro Axeloiá, Júlio Braga, ao outro lado do oceano, quando ainda era recém formado em filosofia, em 1967. "O Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Ufba retomou os estudos afro-brasileiros, numa perspectiva antropológica, a partir de pesquisa de campo. Fui estudar práticas de possessão", explica.
Em duas temporadas trabalhando nas universidades nacionais do Zaire e da Costa do Marfim, ele morou no continente por oito anos, passando pelo Senegal, Benin, Nigéria e Gana e, firmou laços mais profundos. Teve filhos africanos e se consagrou ao orixá Iansã em Sakatê (região entre Nigéria e Benim).
"Minha ligação é eterna. Por tudo que vivi e pelo vínculo religioso que irá permanecer, mesmo após a minha morte", disse Braga.