O filme se abre para uma série de questões que atravessam a problemática da educação e seus entraves
Divulgação | Igor Souza
Dentro da Mostra "Esses Corpos Indóceis", do Festival de Brasília, os cineastas baianos Maria Carolina da Silva e Igor Souza apresentaram o inédito longa-metragem “Diário de Classe”. O filme investiga o processo de alfabetização de jovens e adultos na periferia de Salvador. Para isso, aproximam-se de três personagens centrais, três mulheres que enfrentam barreiras distintas para conquistar uma formação escolar básica.
São elas: Vânia Costa, uma presidiária que espera o desenrolar de seu caso e luta para encontrar o filho desaparecido. A empregada doméstica Maria José, que há muito saiu de Cachoeira para tentar a vida na capital baiana. E a jovem transexual Tifany Moura, com um histórico de violência familiar. São todas histórias duras, mas que encontram no processo de aprendizado educacional um modo de resistência e afirmação frente a um sistema excludente.
A partir do encontro com essas mulheres, o filme se abre para uma série de questões que atravessam a problemática da educação e seus entraves. Estão lá as discussões em torno dos direitos das empregadas domésticas, as arbitrariedades do sistema penitenciário brasileiro e as questões sobre gênero e sexualidade.
“Diários de Classe é esse cotidiano de mulheres que lutam por dignidade, por respeito, por existir. O filme explicita a contradição de uma sociedade meritocrática que acredita que as pessoas não conseguem sair da condição em que se encontram por falta de dedicação e vontade”, refletiu a diretora Maria Carol que debateu o filme com parte da equipe e com o público presente no Cine Brasília.
E uma questão maior ainda se abre em torno dessas discussões: são todas mulheres negras que enfrentam mazelas já arraigadas na sociedade. A montadora Iris de Oliveira, também presente no debate, levantou a questão: “A gente tem assistido a muita coisa que provoca discussões sobre como os corpos de mulheres negras são colocados na tela, de onde vem essa fala e como problematizar essa subjetividade”.
A dupla de diretores faz um trabalho com projetos de cinema e educação, especialmente em cineclubes, e junta essa experiência para formar, com este filme, um painel amplo sobre as desigualdades de classe, raça e gênero que são tão mais acentuados na zona periférica de uma cidade como Salvador. O filme é repleto de questões cruciais e, longe de se apresentar inchado na sua apresentação, deve suscitar ainda muitas discussões futuras.
O fantasma da escravidão
Exibido dentro da Mostra Competitiva, o longa Vazante, de Daniela Thomas, causou certa polêmica ao retratar uma história colonial que toca na representação de negros e escravos no cinema – algo que também pode ser pensado junto a “Diários de Classe” como consequência social contemporânea do violento processo de escravidão que marca a História de formação do Brasil.
Na trama, Antonio (Adriano Carvalho) é um tropeiro que mora na região de Diamantina, início do século XIX, quando a exploração de diamante e ouro já estava em decadência na região. Ao chegar de viagem, descobre que sua esposa grávida morreu no parto junto com o bebê. Ele busca, então, outra esposa naquele núcleo familiar para não perder os laços que se formariam ali. E essa busca acaba envolvendo, afetuosa e sexualmente, também os escravos explorados naquele ambiente, de modos distintos.

Filme chamou a atenção no Festival (Foto: DIvulgação | Igor Souza)
Curiosamente, “Vazante” faz um paralelo muito rico com outro filme recente que retrata a mesma época histórica: o longa “Joaquim”, de Marcelo Gomes, já lançado este ano nos cinemas brasileiros. No filme de Gomes, o retrato que se faz é da constituição dos podres poderes políticos que formaram as instituições públicas brasileiras e suas marcas de dominação e corrupção. Já o filme de Thomas reconstrói todo esse ambiente sociopolítico para, de modo simbólico, alcançar um princípio chave de formação da identidade brasileira que é a mistura de raças.
“Tem dois filmes no ‘Vazante’, pelo menos. Tem um filme de dentro pra fora, a história de uma menina branca, eu, que revisita o passado de sua família tentando entender a dinâmica patriarcal; e existe um outro ‘Vazante’, colocado nesse momento histórico em que vivemos, porque ele está lidando com uma ferida que voltou a ser exposta, para a qual estamos olhando e investigando a causa de tanto despautério”, defendeu a cineasta.
O ponto maior de discussão que aplacou os ânimos do público em Brasília foi a maneira ainda distante e pouco subjetivada com que os negros foram retratados no filme. Por outro lado, a diretora defende que o longa parte justamente do sistema patriarcal – portanto do ponto de vista dos senhores da casa grande – para revelar as relações de poder e hierarquia tão presentes na época.
O ator baiano Fabrício Boliveira, que vive um ex-escravo que trabalha como capaz na fazenda, acrescentou: “Acho importante que este filme seja discutido e que a gente se coloque no debate porque ele traz uma nova questão, a de que esse recorte está sendo feito sempre pelo olhar branco, mas que ao mesmo tempo é parte de nossa História, é parte da história da vida da Daniela. Que bom que ele chegou nesse momento para que a gente possa enfiar o dedo nessa ferida que a gente ainda não sabe como resolver”.
“Vazante” faz ainda um belo e caprichado retrato da época colonial – e vale lembrar o trabalho anterior de Thomas como diretora de arte. Mas mais do que somente construir uma atmosfera, o filme busca investigar a gênese social de tanta coisa capaz de explicar o Brasil de hoje com suas mazelas e desigualdades, e isso é uma sempre bem-vinda qualidade dos bons filmes.