'Era uma Vez Brasília' empaca, inexplicavelmente, no meio do caminho
Divulgação
Há sempre um filme brasiliense na mostra competitiva do Festival de Brasília, o que muitos chamam de cota. Mas um filme de Adirley Queirós não é cota, está longe disso. Estaria longe também por ser um filme da Ceilândia e não de Brasília, como gosta de tratar o próprio diretor, fazendo referência à região administrativa do Distrito Federal onde mora e de onde produz um discurso politizado e contundente por meio de seus filmes.
“Era uma Vez Brasília” tem essa mesma pretensão, mas empaca, inexplicavelmente, no meio do caminho. Causou certo mal estar a sessão da noite dessa sexta-feira, 22, talvez por conta das altas expectativas, mas também por toda uma incompletude que o filme desvela porque constrói uma preparação de forças, uma concentração de energia, que nunca se liberta de todo, nunca se torna (re)ação.
O ponto de partida do filme é genial: conta a história de um agente intergaláctico (Wellington Abreu) que recebe a missão de assassinar o presidente Juscelino Kubitschek no dia da inauguração de Brasília. Por algum erro, ele acaba aportando nos dias atuais, em Ceilândia, logo após o golpe que destitui Dilma Roussef da presidência da República.
Assim como o filme anterior de Queirós, “Branco Sai, Preto Fica” – que inclusive venceu o Festival de Brasília em 2014 –, o novo trabalho do diretor utiliza as marcas do cinema de ficção científica para criar uma atmosfera pós-apocalíptica a fim de fazer um retrato paródico, de fortes cores politizadas, do que se vive hoje em termos de arbitrariedade e também do lugar de deslocamento das periferias em relação aos centros de poder, algo que Ceilândia representa bem, diante dessa situação de crise política.
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É um filme que busca afirmar uma ideia de que as coisas não estão legais, e as narrativas também não estão. Me interessa a procura de um lugar de deslocamento
Adirley Queirós, diretor
“Esses personagens embalam o espaço da ficção e a partir daí a gente faz uma etnografia sobre eles. É a possibilidade de fabular que, na minha cabeça, é muito mais importante do que essa ideia do real”, afirmou o cineasta. Adirley considera seu filme um documentário, apesar das marcas fortes de fabulação, talvez por reproduzir, a seu modo, um sentimento atual de desânimo e desamparo frente às crises e encaminhamentos políticos do Brasil hoje.
“A gente tem noção de que perdeu, estamos nesse lugar, e se a gente não tiver entendimento de que perdeu, não podemos avançar. Para onde vamos agora? Como esse espaço de onde filmamos interage com esse desespero? É um filme que busca afirmar uma ideia de que as coisas não estão legais, e as narrativas também não estão. Me interessa a procura de um lugar de deslocamento”, defende Adirley.
O filme tem a consciência de construir algo desestabilizador como narrativa e proposta de ação política, jogando a responsabilidade para o espectador. Mas pode ser visto também como incapacidade de construir algo para além de “denúncia” de certa inércia. Ainda mais se pensarmos que “Era uma Vez Brasília” é claramente um prolongamento conceitual de seu petardo anterior, um filme muito mais ativo e mesmo explosivo como posicionamento declarado.
“Confrontando” o inimigo
Outro filme exibido no Festival de Brasília compartilha certa dificuldade de lidar com as situações que os tempos sombrios atuais têm provocado nas pessoas, especialmente na esquerda brasileira e sua incapacidade de ação. Ou, nesse caso, de movimento em falso, ainda que a partir de boas intenções por parte do diretor.
“Por Trás da Linha de Escudos”, de Marcelo Pedroso, já havia sido apresentado na Bahia na programação do CachoeiraDoc. Em Brasília, as mesmas questões suscitadas antes voltaram agora em dimensão maior. Pedroso fez um filme com o intuito de conversar com o inimigo, de entender o outro, mas fracassa visivelmente e se enrola num emaranhado de equívocos e proposições que o filme não consegue sustentar.
Ele adentra o Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco para conversar e entender o outro lado – em suas falas, Pedroso se posiciona claramente como um “militante de esquerda”. Vale lembrar que o Choque é a unidade policial responsável para conter e controlar as manifestações constitucionais com mais peso e virulência.
O diretor se coloca como personagem do filme enquanto busca interagir e conversar com alguns membros do Choque, mas evita qualquer tipo de questionamento mais incisivo. Se Pedroso assume uma postura não combativa, até por ter sido acolhido na “casa do inimigo”, ele acaba tornando-se sujeito passivo diante da possibilidade de troca que surge ali entre lados antes antagônicos.
Cai, por outro lado, no discurso de humanização dos policiais, do entendimento de uma estrutura política maior que rege o trabalho daqueles sujeitos. E isso nada mais é do que reforçar um discurso oficial que se blinda o tempo todo de responsabilidades duras pelas ações violentas e truculentas nas operações em que age e das quais temos visto muitos exemplos ultimamente.
Há alguns dias, outro filme produzido a partir de um encontro de lados antagônicos, no caso uma filha e um pai, sendo ela a própria diretora do filme, Heloísa Passos, intitulado “Construindo Pontes”, apresentou essa mesma dificuldade. Enquanto o pai defendia calmamente o projeto político dos militares durante a Ditadura, Heloísa não consegue estabelecer um diálogo de contraposição que não seja a partir da ira e da destemperança. Refugia-se no afeto – afinal não se pode esquecer que aquele é seu pai – para terminar o filme de modo aparentemente apaziguador.
O Brasil (e o cinema brasileiro) não é mesmo para principiantes.
* O jornalista viajou a convite da organização do festival.