A obra evidencia o lado compositora da artista carioca
A associação do piano erudito, tradicional nas salas de concerto, com o batuque, que sedimenta os ritmos da música popular brasileira, dá o tom do segundo disco da carioca Maíra Freitas, Piano e Batucada.
Lançado pela gravadora Biscoito Fino e com patrocínio da Natura Musical, o trabalho tem produção de Sacha Amback e revela a faceta compositora da artista, que assina 10 das 13 faixas. "É um disco mais profundo. Além de interpretar coisas que gosto, estou expondo os meus sentimentos, coisas que penso, que são importantes para mim. As músicas nasceram disso", afirma Maíra.
O álbum tem as percussões de Cassius Theperson e Bernardo Aguiar e conta com as participações do Ilê Aiyê, Felipe Cordeiro, Mart'nália, Filipe Catto e João Sabiá. As três releituras do repertório são Estranha Loucura e Felling Good, já conhecidas nas vozes de Alcione e Nina Simone, e Minha Festa, de Guilherme de Brito e Nelson do Cavaquinho.
Erudito e popular
Filha de Martinho da Vila e irmã de Mart'nália, Maíra tem contato com o samba desde cedo. Ainda no colo da mãe, Rita Freitas, ela acompanhava os shows do pai e participava do desfile da Vila Isabel durante o carnaval.
No entanto, aos sete anos, ao invés de escolher violão ou percussão, que a aproximariam ainda mais do universo popular, ela pediu à mãe para fazer aula de piano, iniciando a relação com a música erudita. "Foi a parti desse momento que segui o caminho do conservatóio à universidade".
Mais de dez anos depois, a artista fez graduação em piano na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir daí, passou a dar aulas e fazer concertos com orquestras.
A relação direta com a música popular ocorreu somente em 2010, quando Maíra participou do disco de Martinho da Vila em homenagem a Noel Rosa, cantando a faixa Último Desejo. Logo em seguida, foi convidada pela Biscoito Fino para gravar um álbum solo.
Ela aceitou a proposta e, em 2011, lançou o primeiro trabalho autoral, com o seu nome, ainda tímido em composições próprias - apenas três -, mas que já evidenciava a instrumentista de mão cheia e intérprete com domínio técnico da voz.
Consistência
No álbum Piano e Batucada, Maíra sintetiza com consistência (e consciência) as suas experiências entre o erudito e o popular. A obra possui conceito marcado pela mistura de percussão, piano e sintetizador - uma espécie de samba experimental.
Nos arranjos, as variações nas levadas afro-brasileiras interagem continuamente com as entoações típicas do samba em letras com texto coloquial que abordam situações íntimas e cotidianas.
"Não tem baixo, sopro ou uma banda tradicional. São somente as teclas e percussões. Esse é o conceito. E tem muito samba, por causa da minha raiz. Mas é um samba diferente, com coisas esquisitas".
A faixa de abertura, Êta, é parceria com o compositor Edu Krieger, que fez os versos após Maíra enviar a melodia." Adorei a letra, combinou comigo". A música possui arranjo e canto que já deixam nítido o conceito do trabalho.
Já Gargalhada, com Felipe Cordeiro e Mart'nália, tem arranjo cheio de variações no compasso. "Fiz essa música pensando no jeito que a minha família tem de rir, contar piada, ficar no bar, falar besteira".
Entre as releituras, Estranha Loucura é um dueto com Felipe Catto e possui arranjo de ska e canto sem excessos passionais que afastam qualquer semelhança com a interpretação de Alcione. "Não consigo fazer uma versão parecida com outra. Por isso, ela é contida".
Piano e Batucada tem ainda o Ilê Aiyê em Feeling Good. A faixa, homenagem a Nina Simone - que difundiu a música -, possui a sutileza do piano que contrasta com o groove entortado das congas e atabaques.
"Hoje a gente fala de direitos civis e penso muito em Nina Simone, uma mulher que queria ser pianista clássica e não podia porque era negra. Ela é uma referência. Se ela fosse lá no Ilê, iria se amarrar".