A Rua Ruy Barbosa e suas peculiares histórias Na foto: Firmino Cardoso é barbeiro há mais de 60 anos
A malandragem ainda dorme nas vielas entre a Ladeira da Praça e a Castro Alves, no Centro Antigo de Salvador, quando Firmino Cardoso, 74, aponta na Rua Ruy Barbosa. Calça de linho, sapato branco, camisa de cambraia e colar de santo no pescoço, ele avança na via estreita paralela à Chile até um pouco antes do cruzamento com a Rua do Tira Chapéu.
Diz que gosta de pegar no batente assim, "nos trinques", hábito que mantém desde 1960. Em sua barbearia, ainda hoje funcionando no mesmo lugar - uma portinha no número 59 da rua, recebia "clientes da alta" . Eram juízes, advogados, oficiais do Exército... "Naquela época, ninguém ia trabalhar sem fazer a barba". Nem voltava para casa sem sentar em sua cadeira para passar uma loção. "Era para disfarçar a pulada de cerca".
Em meio século não mudaram apenas os costumes da freguesia. Das três cadeiras, diante do espelho, só resta uma com o mesmo ar sessentão. O tempo que levou os sócios, Nélson e Abelardo, também trouxe nova dinâmica, que obriga Firmino a encurtar o horário de atendimento. Hoje, os frequentadores da barbearia trabalham ali mesmo, nas redondezas. "A rua mudou muito. Agora, não vem mais quase ninguém. Mas aqui era bem movimentado. Tinha residências, lojas de alto padrão e os desfiles das madames de luvas e chapéu que vinham tomar chá no Palace Hotel, aqui do lado, na Rua Chile".
Se for como pensa o historiador Waldir Freitas Oliveira, que diz que algumas ruas das cidades onde vivemos são como "roupas que vestimos", quase uma "nova pele sobre os nossos corpos", o barbeiro Firmino até se confunde: são seus os olhos da Rua Ruy Barbosa? Ele chegou ali há 52 anos, quando o Centro Antigo de Salvador era puro glamour e, como todos os comerciantes e moradores do local, acabou enredado na trama de sua decadência.
Antes de se perder no emaranhado de fios que enfeiam as fachadas gastas dos edifícios - vários deles abandonados - ao longo da rua, o olhar de estranhamento de Firmino se confraterniza com o de outros saudosos habitués daquele pedaço da Velha Bahia que aos poucos desaparece.
Povoada por personagens fabulosos, que há décadas dão vida ao comércio singular do lugar, com seus sebos e antiquários, a rua ainda pulsa num ritmo particular. Ainda estão de pé a casa de número 12, onde nasceu Ruy Barbosa, reconstituída depois para abrigar um museu que guarda sua memória; o restaurante que o antropólogo Pierre Verger gostava de frequentar; o sebo que reunia a nata da intelectualidade baiana da época; e a casa de antiguidades que alimentava a divertida disputa entre os artistas Mario Cravo Jr. e Mirabeau Sampaio por imaginárias raras.
Naquela época, entre as décadas de 1960 e 70, auge de sua vocação boemia, a Ruy Barbosa tinha os dancings mais animados da cidade, e entre seus frequentadores o desembargador Eduardo Jorge Magalhães, vice-presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) . Ele lembra que, além da danceteria Marajó, na esquina da Ruy com a Rua da Ajuda, e de um cassino na Rua Chile, que arrastavam os baladeiros ao Centro, "surgiram dois pontos significativos na vida cultural da cidade: o Cê Que Sabe, restaurante do radialista Jaime Cordeiro, e o Restaurante Oxalufã, que ficava de portas abertas até o dia clarear, servindo a boa comida de Fausto, um ex-cozinheiro do palácio".
Rua de família
A historiadora Consuelo Pondé de Senna, presidente do IGHB, diz que foi nos séculos 18 e 19, quando se tornou endereço de pessoas de grande reputação e de famílias tradicionais, que a rua teve sua importância. O arquiteto Sátiro Dias, o médico Magalhães Neto, o avô de Eduardo Jorge (e também de seu irmão, o ex-senador Antonio Carlos Magalhães), e a família do jurista Ruy Barbosa moraram na Rua Ruy Barbosa.
Foi depois da morte do Águia de Haia, em 1923, que a via quatrocentona, herança dos registros topográficos da primitiva Cidade do Salvador, ganhou o nome que ostenta até hoje. Em História da Cidade do Salvador, Theodoro Sampaio conta que aquela rua era chamada Rua dos Capitães, por ter sido, a partir da segunda metade de 1500, local de passagem e morada dos oficiais do Palácio do Governo Geral do Brasil.
Revendo o caminho pensado por Luiz Dias, autor do projeto da cidade, Consuelo Pondé diz que o logradouro secular começou a declinar depois de 1975, com o fechamento do edifício de A TARDE, na Praça Castro Alves. "Foi quando deixou de ser uma rua familiar".
Gente chique
Em 2012, as feições modestas da Ruy Barbosa destoam completamente do passado pomposo, que a antiquária Helena Montalvão, 78, ainda tem bem vivo na memória. Nascida em Sergipe, veio para Bahia mocinha e há 53 anos mora no mesmo lugar, um casarão de 1713, que fica no número 47. É lá que mantém a casa de antiguidades mais antiga da rua.
Hoje, ela só quer saber de vender lustres antigos, mas naquele mesmo endereço havia raridades que atraía "só gente chique". Ah, ela cita muitos nomes. Quase todo o clã da família Simões, proprietária do Grupo A TARDE; o escritor Jorge Amado e o pintor Carlos Bastos, além do jornalista e colecionador de arte Odorico Tavares, que, quando saía da redação do Diário de Notícias, passava lá. Mas quem não arredava o pé da casa de dona Helena eram os artistas plásticos Mario Cravo Jr. e Mirabeau Sampaio. "Vinham atrás de santos com cara de macaco (aquelas imaginárias bem rústicas) e brigavam por elas".
A Ruy Barbosa ainda é conhecida como "rua dos antiquários", mas os 11 que se mantêm no local, do mais simples ao afortunado (o San Martin, o último da rua, já chegando à Ladeira da Praça), sofrem com o esvaziamento do comércio local. A queixa é geral.
Acostumado a receber clientes de todo o País, Eurico Brandão, 83, dono do Sebo Brandão, uma das casas mais tradicionais do Centro Histórico, ele estranha a queda do movimento, não só porque hoje os sebos vivem tempos de vacas magras, mas por causa da decadência da rua. Pernambucano de Serra Talhada, montou o negócio em Salvador em 1969, a pedido do governador da Bahia, Luiz Vianna Filho. "Ele vinha aos sábados, e sua presença era uma senhora promoção para a casa".
Ainda funciona no mesmo lugar, um salão no subsolo do número 15-B, mas o sebo, o primeiro da capital baiana, nasceu no prédio ao lado, em um dos apartamentos do Hotel Paris, onde Eurico estava morando. Durante décadas trabalhou com o irmão, João, que abriu o próprio (e bem mais modesto) negócio do outro lado da rua, depois a Sociedade Sebo Brandão se desfez. Tem "ótimas lembranças " dos anos dourados.
"A casa era frequentada pelos grandes intelectuais". Os antropólogos Pierre Verger e Vivaldo Costa Lima, o artista Carybé e os historiadores Cid Teixeira, Antonio Risério e Waldir Freitas Oliveira eram figurinhas carimbadas. Mas de vez em quando apareciam figurões, como o senador José Sarney, causando alvoroço na rua.
Para onde foi a vida que havia ali, no vaivém dos turistas, no riso alto iluminado pelas placas de neon e nas interlocuções rebuscadas dos imortais das letras? Esta pergunta a comerciante Kalina Estevez, 73, e seu esposo, Luís Martinez Estevez, se fazem todos os dias. Eles, que em 1980 abriram ali, na casa de número 29, o Restaurante Mini Cacique, lamentam o "sumiço dos turistas": "A rua hoje está abandonada".
Nego Tchao
Na via estreita que em linha reta vai dar na Ladeira da Praça, hoje trafegam veículos espremidos entre outros, mal estacionados. A poesia do flaneur foi substituída pela figura impessoal do transeunte e circula quase invisível entre funcionários públicos que servem ao anexo da Câmara de Vereadores e comerciantes e comerciários das lojas do entorno. Entre eles se infiltra a população crescente de desocupados. De uma maneira tosca, são eles que vêm contribuindo para resignificar o lugar.
"Você sabe quem é o Nego Tchao?", pergunta José Mourinho Gonzalez, 75. Pepe, como é conhecido o espanhol da Galícia que desde 1970 tornou-se proprietário de uma das maiores legendas da rua, o Hotel Paris, refere-se à figura que vem "tocando o terror" nas ruas e becos do Centro Histórico, quase como uma entidade plasmada pela insegurança que ronda os comerciantes que teimam em permanecer no local.
Reféns da falta de policiamento, eles oscilam entre o infortúnio de presenciar o declínio de seu negócio e a esperança quase autoinduzida de ver a rua recuperar a reputação de outrora. À espera de um milagre, depositam suas apostas no Hotel Fasano. O megaempreendimento não só revitaliza o antigo Edifício A TARDE como ocupa o primeiro prédio da Rua Ruy, que havia abrigado duas salas tradicionais de Salvador, o Cinema Glória e o Cine Tamoio.
Na expectativa com a inauguração do hotel-butique, prevista para 2013, eles esperam resolver seus maiores problemas: "A insegurança afeta diretamente o comércio local. Estamos em uma crise terrível". Pepe, que chegou à rua em 1970, chegou a ter 26 funcionários. "Hoje só tenho seis e esta semana nenhum hóspede".
Quase todos os comerciantes que viram o apogeu da Rua Ruy Barbosa já tiveram uma arma apontada na cabeça. "Mantenho a farmácia aqui em nome da tradição, porque esta é uma casa da família". O desabafo da médica Maria Amélia Soares da Cunha, 85, herdeira da farmácia homeopática mais antiga da cidade, dá o tom desafortunado de um discurso unânime.
Ela prefere ficar com as lembranças da infância, quando ia com a mãe à farmácia do avô. "Naquela época se andava a pé", lembra Waldir Oliveira. Firmino, o barbeiro, até tira uma onda ao resgatar na memória a figura do "balão apagado": "Sabe o que era? Era como chamavam o bebum que apagava, depois da farra. Perdia relógio e sapatos. Era a malandragem daquele tempo aqui na rua. Tempo bom".