Antes de se tornar assessora parlamentar, Tuka Perez tinha um salão de beleza
Censos não os levam em conta, dificultando a elaboração de programas específicos. Ainda assim, progressos têm sido feitos para que, finalmente, transexuais possam resgatar a cidadania e inserir-se no mercado de trabalho e na vida acadêmica
Não quer ser homem? Tem que pegar peso, o irmão dizia para ele. Do porta-malas do carro, João Hugo Cerqueira, 22, ia e voltava carregando caixas para abastecer o mercadinho da família, num esforço silencioso e suarento. Cerveja, refrigerante, arroz, iogurte. Alguém chegou procurando pelo preço de um produto ao gerente, de lá mesmo de onde estava João gritou: "Amor, pode me ajudar?". No caixa, Sellena Ramos, 23, os atendeu prontamente, com sua voz baixa e pausada. Juntos, eles dão conta de quase tudo por ali, sem passar recibos inúteis da singularidade que carregam. João e Sellena são transexuais.
"Sou a mulher que a família dele queria que ele fosse. Ele é o homem que minha família queria que eu fosse", ri Sellena. Casados e trabalhando, eles estão com a vida assentada e fazem planos para o futuro breve. Sellena não sabe ainda se volta para o curso de licenciatura em química ou tenta teatro, João quer estudar jornalismo. Tempestades precederam a calmaria.
Sabe o que é a coragem de se olhar no espelho, não se ver no próprio corpo, não se ouvir pelo próprio nome, e ir atrás do que se é de verdade? Pois, essa coragem. João começou sua "adequação" há dois anos e está fazendo uma vaquinha para pagar a mastectomia que irá livrá-lo do desconforto e do calor da faixa que usa para comprimir os seios. Sellena faz a "transição" há sete anos.
O emprego ali veio a calhar. João diz que evita buscar trabalho formal porque teria que mostrar uma documentação com um nome que não é mais seu. Já entrou na Justiça para mudar isso. Sellena ainda espera para tomar essa providência. Na Universidade Federal do Recôncavo, onde estudava, ela foi a primeira pessoa a se matricular com o nome social, mas vem adiando a mudança definitiva. "Para mim, seria difícil ter mudado meu nome e não ser lida como mulher, não ter essa passabilidade". Ressente-se de que João seja visto como homem e de que os pescoços ainda entortem para ela. "Eu é que sofro a violência de ser chamada de traveco".
Nas pesquisas e censos feitos no Brasil, os transexuais também não são "lidos". Ninguém sabe direito quantos eles são, e muito menos do que vivem. A Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das pessoas trans trabalhem como profissionais do sexo, percentual que relaciona-se mais ao universo das travestis e mulheres trans e carece de contornos científicos.
Quase invisíveis
De modo vagaroso, mas persistente, essa situação vem mudando. Tanto que hoje os indicadores mais confiáveis para olhar para a população transgênera no Brasil são as inscrições pelo nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), como explica o professor da Universidade Federal da Bahia Felipe Fernandes, que pesquisa identidade e gênero. "Só assim eles se tornam minimamente visíveis, ainda que haja desconhecimento dessa possibilidade e, portanto, subnotificação".
No Enem de 2014, 102 se inscreveram para tentar uma vaga nas universidades. No ano passado, o número saltou para 278, um crescimento de 172%. Saindo da esfera da educação para a do trabalho, algumas instituições também vêm se adaptando para um tratamento mais digno à população trans, por pressão das organizações vinculados à causa LGBT.
Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Conselho Federal de Psicologia já baixaram resoluções determinando que seus filiados sejam identificados como desejarem. Nos órgãos públicos, portarias asseguram que os servidores travestis e transexuais utilizem o nome social nos seus crachás e e-mails corporativos.
Há um ano, Millena Passos, 37, percorre os corredores da Secretaria de Política para as Mulheres com seus longos cabelos pretos. Ela ajuda a organizar as reuniões do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM). Antes, ganhava a vida como cabeleireira e também trabalhou "nas ruas". "Deixe assim para não aumentar o estigma. Sou uma sobrevivente". Resistiu lutando. Tornou-se uma militante reconhecida nacionalmente.
Seus colegas a tratam de maneira afetuosa, mas houve uma ou outra feminista que achou esquisita essa história de vê-la na secretaria, como se Millena não fosse mulher de verdade. Ela se entristece de ouvir isso. Porque se tem uma coisa que Millena sempre sentiu é que é uma mulher de verdade. Há cerca de cinco anos, espera a cirurgia que irá adequar a realidade ao seu pensamento. Também quer fazer faculdade, de psicologia ou direito. "Estou parecendo criança transitando por essas profissões, sonhando... É algo que nunca tinha me permitido antes".
Oportunidades
Não há dinheiro no mundo que pague essa sensação de dar a volta por cima. Tuka Perez, "3.2", adora tirar onda com os irmãos que a perturbavam para que agisse feito homem. "Hoje eu sou assessora da Câmara, e vocês estão onde mesmo?". Do alto do seu salto, ela ri muito, com uma simpatia que vai minando resistências. Não há quem não a cumprimente enquanto caminha pela Câmara de Vereadores, onde trabalha há três anos. Antes, ela tinha um salão de beleza, e já havia participado de muitas entrevistas de emprego. "Às vezes, sabia que tinha ido bem, mas eles nunca ligavam de volta. Agora, estou tendo uma oportunidade única de mostrar do que sou capaz".
Quando chegou à Câmara, ela ficava na recepção do gabinete do vereador Suíca (PT), dando os bons-dias, posso ajudar? Vez e outra ouvia uns rumores ou os imaginava pela forma como a olhavam, investigando se era mulher ou travesti ou o quê. "Nunca me alterei por causa disso, sempre deixei passar. Cada um tem sua maneira de pensar. Bem ou mal, falem de mim!".
A briga que ela encarou foi na faculdade, quando o professor queria chamá-la pelo "nome do finado". Não aceitou que o preconceito viesse de um educador. Com a situação resolvida, formou-se em serviço social. Seu sonho é ter uma ONG em Pernambués, onde mora, para dar oportunidades a jovens LGBT.
Ela mesma volta e meia participa de cursos inclusivos. Ao lado de 28 travestis e mulheres trans, assistiu às aulas para auxiliares administrativos promovidos pela SineBahia em parceria com o Núcleo de Defesa dos Direitos da População LGBT, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH). Paulette Furação, primeira trans a ocupar um cargo no estado, coordenava o núcleo à época. "O trabalho é a melhor porta de entrada para dignificar as pessoas, sair da invisibilidade", defende Paulette.
Foram três cursos como esse em três anos, com cerca de 30 vagas cada. Difícil foi inserir as participantes no mercado de trabalho. Nenhuma das colegas de Tuka conseguiram emprego, nas outras turmas não foi muito diferente. Algumas "meninas", como Paulette as chama, continuaram trabalhando como profissionais do sexo.
Transfobia
Vinícius Alves, que agora ocupa o lugar de Paulette na renomeada Coordenação do Núcleo LGBT, diz que o grande desafio é promover a mediação desta mão de obra. Na última sexta, ele participou do Encontro de Inserção de Pessoas LGBT no Mundo do Trabalho, uma das atividades da III Conferência Estadual LGBT, que termina hoje. "Além de estabelecer esse diálogo com o empresariado, também queremos estimular o empreendedorismo e a participação em editais de socioativismo, que a população trans não costuma acessar".
Há também a meta de implantar quatro Centros de Promoção e Defesa dos Direitos LGBT até 2019, com orçamento previsto de R$ 267 mil (para um único equipamento). Hoje, não há nenhum centro do tipo em funcionamento, nem por parte do governo estadual, nem da prefeitura. Em maio de 2014, na véspera do Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, o prefeito ACM Neto anunciou que Salvador ganharia um Centro Municipal de Referência LGBT, que até hoje não saiu do papel.
Quer dizer, saiu. As instalações do centro já existem há cerca de um ano, há uma placa de identificação no local, mas o espaço nunca foi inaugurado. A prefeitura não quis informar o valor pago pelo aluguel do imóvel. A secretária Municipal de Reparação, Ivete Sacramento, responsável pelo Centro Municipal de Referência LGBT, não quis falar com a Muito.
Por meio da assessoria de imprensa da Semur, informou que a estrutura do local está completa, mas que a inauguração esbarra em questões burocráticas de contratação de pessoal. Sobre as possíveis atividades que serão desenvolvidas no centro, apenas um sonoro "nada a declarar".
Transversalidade
Em janeiro, a fotógrafa Andréa Magnoni promoveu uma oficina de fotografia para dez trans e travestis, por meio de um edital da Fundação Gregório de Mattos, órgão da prefeitura. Eles tiveram que pensar em um tema para uma exposição e escolheram a solidão. TRANSformando o Olhar - Solidões Trans e Travestis está em cartaz até o dia 31 no Teatro Gamboa Nova.
Para Andréa, não é por falta de capacitação que as pessoas trans não ocupam o mercado de trabalho como poderiam. "É um caso de transfobia nu e cru". Ela lembra de um participante da oficina que poderia estar agora dando aulas de história, mas não consegue achar emprego.
Preconceito que, muitas vezes, passa também pela escola, e, portanto, por qualificação, num ciclo para lá de perverso. "A gente tem um sistema educacional que é hostil a quem desvia das perspectivas hegemônicas de gênero", diz o pesquisador Felipe. Uma conquista recente é a possibilidade de usar o nome social em qualquer estabelecimento de ensino, garantida no ano passado por uma resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (CNCD-LGBT).
Para quem deixou os bancos escolares por bullying, há iniciativas como o Transviando o Enem, curso preparatório gratuito para o exame, direcionado a transexuais e travestis. Para Felipe, é preciso uma "mudança geral simbólica em relação ao gênero", para entendê-lo como uma "construção" e um "direito humano". Ele também defende que todas as políticas públicas levem em conta a transversalidade de gênero, para além de ações isoladas.
De mudança
Thomas Mota, 23, terminou o ensino médio, fez cursos de informática e há dois anos saiu de Pojuca, onde morava, para Salvador. Não veio propriamente em busca de emprego, mas de "tratamento". Aqui, podia ver-se melhor no espelho. Está se consultando com uma psicóloga e uma endocrinologista, que lhe prescreveu hormônios. Para pagar as contas, virou operador de telemarketing, mas está processando a empresa por transfobia. "Eu tinha que usar o banheiro feminino e era chamado por meu nome feminino no meio dos outros colaboradores".
Tom ficou um ano desempregado, fazendo bicos. No final do mês passado, foi contratado com carteira assinada por uma casa de frios. Ficou tenso na hora de se apresentar ao novo patrão, mas ele não levou sua condição em conta. Disse que não ia deixar de empregá-lo por conta disso. Está gostando do trabalho como atendente. Diverte-se com os colegas, para quem ainda não contou que é trans. "Não me incomodo de falar, mas algumas pessoas não reagem bem. Melhor deixar quieto".
Às vezes, zombam da sua voz nada grave, mas ele diz que não liga. "Prefiro que achem que sou um homem gay do que pensem que sou mulher". Desde pequeno, ele se sentia esquisito, imerso naquela tentativa vã de gostar de maquiagem, de roupa enfeitada, de namorar meninos. Andava de maneira tão fechada que ganhou o apelido de Robocop Gay.
Passou a raspar o cabelo, usar blusas folgadas, reivindicar sua verdade. O pai parou de falar com ele. A mãe tenta entender e aceitar, mas ainda o chama de filha. A irmã mais velha desmaiou quando o viu de bigode. Mas pergunte para Tom se ele não está feliz, agora, mais do que nunca. Quer entrar na academia para ganhar músculos, quer cada vez mais ver desaparecer todo e qualquer traço feminino que ainda carregue, quer viver a maravilhosa sensação de andar pela rua e passar despercebido.
>> Mini dicionário Trans
_transgênero
Pessoa que cruza as fronteiras entre os gêneros. Pode ser um transexual ou uma travesti, por exemplo (traveco é considerado um termo ofensivo). O site transempregos.com.br reúne vagas para transgêneros
_transexual
Pessoa cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico. Pode optar ou não pela cirurgia de redesignação sexual (conhecida popularmente como mudança de sexo).
_nome social
Nome pelo qual os transexuais e travestis se reconhecem e preferem ser chamados, enquanto ainda não alteraram seus documentos civis, como a carteira de identidade.