O poeta participou da Iemanjá Filmes, da editora Macunaíma e da revista literária Mapa
Aos 80 anos, Fernando da Rocha Peres será homenageado em dois eventos, que ocorrem nos dias 29 e 30, na Ufba e na Academia de Letras da Bahia. Em 2017, ele comemora meio século de poesia
Geralmente, conversamos na ampla varanda do apartamento em que Fernando da Rocha Peres mora. Livros roubam o olhar por todo canto, acomodados em estantes de madeira ou sobre móveis. Ao longo dos últimos anos, foram muitas entrevistas – acerca da sua poesia, da Geração Mapa e das pesquisas históricas que realiza. Desta vez, o assunto é mais amplo: a vida. Reencontro o poeta no início do penúltimo mês deste ano que não termina, em um dia que oscila entre a chuva e o sol. Aos 80 anos, completados no domingo, 28, Peres preserva o jeito simples e a extrema franqueza. Os cabelos muito alvos caem nos ombros. A fala é suave, pausada. O autor de Memória da Sé (Corrupio, 2009) sabe que habita com ele parte da história da literatura baiana.
De envelopes pardos e caixas de papelão retira exemplares únicos, raros e belíssimos. Ao vê-los, tem-se a dimensão exata daquilo que foi produzido culturalmente na Bahia nos anos 50 e 60. A visão daqueles livros provoca também certa tristeza pelo que poderia ter sido. A plaquete xerográfica em madeira de um dos convites para as jogralescas, criada por Calasans Neto. Os três números da preciosa revista literária Mapa – há muito a exigir uma edição fac-similar, à semelhança do que se fez com a revista Hera – e algumas das publicações da Macunaíma, sonho editorial gestado por Peres, Glauber Rocha e Paulo Gil Soares. Não são quaisquer livros, fique claro, mas edições cuidadosas, como a que celebra a amizade entre Pablo Neruda e Vinicius de Moraes, com a reprodução dos poemas manuscritos trocados entre os dois.
Território da memória
Visto o sólido acervo, há outro igualmente importante. Este, registro de voz, nos conta sobre uma carreira literária iniciada há meio século quase. Em 2017, Peres pretende comemorar seus 50 anos de poesia com o lançamento de uma antologia, ainda em processo de seleção.
O primeiro livro saiu pela Macunaíma em 1966, Cinco Poetas, em coautoria com Carvalho Filho, Florisvaldo Mattos, Godofredo Filho e Myriam Fraga. Sobre Peres, Florisvaldo nos diz: “É um companheiro com que trilhei luminosos caminhos da chamada Geração Mapa. Desde um bom tempo, tenho sido um inveterado na saudação das datas redondas de sua vida”.
Em 1986, Mattos escreveu um poema homenageando os 50 anos do amigo, no qual destacava-lhe o “puro amor gregoriano” e evocava sua condição de pesquisador da vida e obra de Gregório de Mattos. Em 1996, comparou-o à figura de um gentil-homem saído da paleta de El Greco.
E, há dez anos, vislumbrou em Peres como poeta, então “setentão”, caminhada de amadurecimento poético comparável à do irlandês Yeats, “cuja poesia mais crescia em estro e qualidade quanto mais avançava a idade”. Em 2011, quando este completou 75 anos, saudou-o então “com um poemeto de toque burlesco, que estará em um livro a vir a público em dezembro” (leia o inédito na página 19).
Ao encontro com Florisvaldo Mattos soma-se em sua vida a amizade com o cineasta Glauber Rocha, com quem conviveu da adolescência até a maturidade. Com eles e muitos outros, como o jornalista João Carlos Teixeira Gomes e o poeta Carlos Anísio Melhor, Peres formou a Geração Mapa, movimento literário criado a partir da organização de estudantes secundaristas do Colégio Central que virou coisa séria, ganhou repercussão nacional e esteve na origem de tudo que se gestou culturalmente na Bahia, a partir dos anos 50, seja cinema, música, artes visuais e literatura.
Tais encontros levaram também ao convívio com autores como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e José Midlin. Em coautoria com Drummond, entre outros, Peres lançou, em 1983, o hoje raríssimo Louvação Poética a Pedro Nava, em edição bancada por Midlin. “Todos estão mortos”, diz ele. E confessa não saber ainda o que fazer com a correspondência inédita que guarda, especialmente a trocada com o poeta de Itabira.
As idas ao Rio de Janeiro, lembra, eram sempre pretexto para o encontro e a celebração da amizade. Publicar? “Talvez”. Pergunto-lhe – de praxe – como se sente ao comemorar 80 anos. Peres respira fundo e diz que é hora de despir o corpo de uma série de coisas, como as pretensões e a vaidade, a despeito de manter-se sempre atento e furioso. “É a hora de vestir a alma”.
Mas como manter-se atento e furioso em um mundo que retrocede aceleradamente? “Lamentavelmente, diante do quadro que se apresenta hoje, constatamos que inúmeras gerações, não só a minha, falharam. O homem continua, de todo modo, lutando contra si mesmo. Todas as revoluções fracassaram”, diz. Parece desânimo, mas trata-se do exercício de um senso crítico apurado. Sobre a morte, fala com serenidade. “Só quem não se preocupa com ela é aquele que não a teme”.
Mas a verdade é que, em torno dele, move-se naquele exato momento uma agitada celebração de vida que inclui homenagem religiosa, no Mosteiro de São Bento, e pelo menos dois ciclos de debates, na Universidade Federal da Bahia e na Academia de Letras, que ele integra desde 1987. Responsável pela programação, a professora Edilene Matos – eleita este ano para a cadeira de número 13, que era ocupada por Myriam Fraga – dividiu as comemorações em dois polos. Um deles será realizado no âmbito do Pós-Cultura do Instituto de Humanidades, que terá mesas e debates, no dia 29, com a presença de João Carlos Teixeira Gomes, Florisvaldo Mattos, Mariluce Moura, Flávia Garcia Rosa, Francisco Sena e Sílvia La Regina. Haverá ainda leitura de poemas, com Antonia Torreão Herrera, Cássia Lopes e Cleise Mendes.
No dia 30, na ALB, acontecerá um ciclo intitulado “Poéticas de Fernando da Rocha Peres”, a partir das 17 horas. Estão programadas exposição de livros, fotos e vídeos e nova mesa-redonda, com Aleilton Fonseca, Gerana Damulakis e Urânia Tourinho Peres. Todos os eventos têm entrada franca. Para Edilene, o importante é evidenciar as duas faces presentes na trajetória do escritor, a do pesquisador e a do poeta. “Conheci o Fernando em 1970 no Instituto de Letras da Ufba. Fui aluna dele na disciplina cultura brasileira. Era então um jovem professor, mas extremamente sério”. Finda a faculdade, Edilene trabalhou com o mestre na Fundação Cultural do Estado, quando integrou o serviço de difusão cultural da instituição, então presidida por ele.
Amizades de toda a vida
Para Edilene Matos é quase simbólico que as homenagens, na universidade, estejam concentradas no Pavilhão Glauber Rocha, já que a amizade entre os dois segue indissociável de suas carreiras e daquilo que representaram um na vida do outro. Fernando e Glauber conheceram-se ainda adolescentes no Colégio Central e, juntos, criaram inúmeros projetos. Fizeram as jogralescas – montagens teatrais a partir de poemas modernistas –, enfrentaram a repercussão nacional da censura ao poema Blasfêmia, de Cecília Meireles, estiveram lado a lado na criação da Iemanjá Filmes e da Macunaíma e editaram, respectivamente, o primeiro e o derradeiro número da revista Mapa. Brigaram muitas vezes, fizeram as pazes outras tantas. E foi a Fernando que Glauber confiou o copião do polêmico filme que registra o enterro de Di Cavalcanti.
Ainda no final dos anos 50, separaram-se, pondo fim à primeira geração do movimento literário iniciado por eles. Glauber partiu para o Rio de Janeiro, onde daria início à carreira no cinema. Fernando foi para Recife, onde dedicou-se à faculdade de direito. “Poderia ter sido diferente, se eu tivesse seguido também para o Rio”, diz ele. Mas, de Recife, Peres retornou a Salvador, casou-se com Urânia e deu sequência às suas pesquisas acadêmicas, em paralelo à vida literária. Mas ser professor, para ele, sempre foi muito mais que uma carreira. No inventário de suas realizações é aquilo que primeiro lista. “Digo hoje que posso estar satisfeito comigo mesmo porque fui um professor, e porque sempre fiquei muito feliz ao ver que consegui ensinar algo útil a outras pessoas. Além disso, fui e continuo sendo um escritor. Escrevo principalmente poesia, apesar de ter, com muito gosto, escrito também textos historiográficos. Esse é um reconhecimento pessoal. Numa terra como a Bahia, de nada vale”.
Lidar com as contradições da sua “Salvadolores” ainda é algo que o amargura. “Trata-se de uma cidade medíocre, e isso é algo que me deixa extremamente triste. Um escritor baiano que viva aqui não tem interlocutores”. Mas, afinal, como reduzir a Bahia de Castro Alves e Gregório de Matos a tão sombria definição? “A mediocridade está naquilo que se costuma chamar de cultura do entretenimento”, explica.
Por essa razão, diz ele, manter-se longe das redes sociais ainda é uma forma de preservar a lucidez e a ternura. “As redes sociais embrutecem as pessoas. Basta ir a um cinema ou a shopping para perceber que as pessoas sequer olham umas para as outras. O que precisamos hoje é o contrário disso, precisamos do encontro, do diálogo”.
E foi justo essa abertura para o diálogo que o fez tão querido entre seus pares. Para o escritor Antonio Torres, Peres chega aos 80 com a fina estampa que sempre o caracterizou. “Ele é um homem elegante. É elegante na prosa, na poesia e na vida. Sou-lhe muito grato pelo extraordinário apoio que concedeu, ao seu tempo de diretor da Fundação Cultural da Bahia, ao lançamento, em Salvador, no ano de 1976, de Essa Terra. E ele sequer conhecia o autor, que era então quase um desconhecido na capital”.
Confrades
Colegas da ALB, como Aleilton Fonseca e Gláucia Lemos, reforçam a imagem de um elegante contestador. “Peres é um intelectual bastante comprometido com as questões culturais da Bahia, sempre disposto a discutir suas raízes, seus traços culturais e suas tradições literárias. Como estudioso, tem sido um crítico atento às desconfigurações de nosso patrimônio arquitetônico; como pesquisador é um dos biógrafos mais importantes de Gregório de Mattos”, diz Aleilton.
Como poeta, destaca o autor do romance Nhô Guimarães, Peres tem sido “um cartografista imagético de Salvador, sua lírica Salvadolores, dentro da tradição moderna das poéticas urbanas, como um escritor viajante que amarra na escrita os laços de Salvador com Lisboa e outras cidades lusitanas, numa ponte cultural constante que cultiva entre Brasil e Portugal”.
Para Fonseca, Febre terçã e Salvadolores são dois de seus livros mais marcantes, “como síntese de um discurso lírico que representa sua perspectiva como intelectual contemporâneo”. A escritora Gláucia Lemos conta que se aproximou de Peres, a partir de 2010, quando de seu ingresso na Academia de Letras da Bahia. O convívio fez com que se tornasse “sua admiradora”, especialmente por conta do amor à cidade e da personalidade autêntica.
“Fernando é de uma autenticidade admirável. Ele é dotado de tal presença de espírito que esta se revela mesmo nas oportunidades mais inusitadas. Quando toma a palavra, ele consegue prender a atenção de todos, e há sempre uma observação espirituosa a fazer. É uma personalidade daquelas de quem se pode dizer marcante”, observa a ficcionista e poeta.
Marcante também é a tranquilidade com que Peres contempla o passado. Esteve no centro de uma revolução cultural importante e faz questão de frisar a instância em que esta se deu. “Mapa nasceu e se desenvolveu no meio estudantil, foi um movimento essencialmente secundarista, feito a partir de leituras do modernismo quando ainda predominava o provincianismo”. A memória que dela ficou, tangível e intangível, é prova de sua força.