O premiado ator baiano viveu um professor aposentado em "Um Vânia", de Tchekhov
Afastado dos palcos desde 2011, quando integrou o elenco de "Fim de Partida", sob direção de Harildo Déda, Gideon Rosa, 59, retorna à vida teatral este ano em "Um Vânia", de Tchekhov, dirigido por Gil Vicente Tavares, em cartaz no Palacete das Artes
Quando as luzes do palco, no Palacete das Artes, iluminam o ator Gideon Rosa, 59, muitas emoções estão ali, postas para o público, nos momentos de tensão vividos pelo seu personagem no espetáculo Um Vânia, de Tchekhov. Nenhuma delas, no entanto, é a inveja, velha conhecida do ator nos últimos seis anos. Um dos maiores intérpretes do estado está afastado da cena por conta de uma irreversível doença genética que o colocou na mesa de cirurgia para retirar os rins. Desde então, um dos sete pecados capitais tem sido fiel escudeiro do ator quando vê algum colega em cena, derramando textos e interpretações.
“Assisto aos espetáculos em cartaz sempre que possível. Quando vou cumprimentar os meus colegas no camarim, digo: ‘Eu vim, mas estou morrendo de inveja de você’. Ficar em cena me dá uma comichão, uma agonia. Nesta montagem, por exemplo, o meu personagem diz: ‘Eu quero viver, amo o sucesso, gosto de provocar agitação em torno do meu nome’. Quando li esse trecho, disse: isso é uma sacanagem!”, diverte-se. Para Gideon, inveja é apenas outro nome possível para a saudade que sente das coxias e do frio na barriga, ao dominar o proscênio com sua inconfundível voz potente.
Fora do circuito teatral desde 2011, após temporada com a montagem Fim de Partida, texto de Samuel Beckett com direção de Harildo Déda, Gideon Rosa vive novo flerte com os palcos. Dando vida ao professor Alexandre Serebriakov, numa adaptação de Tio Vânia, escrito pelo dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904) no século 19. O ator, natural de Buerarema, conta que o convite para esse “reencontro” com a cena, evitando a palavra “retorno”, veio do diretor Gil Vicente Tavares.

Ensaio de "Um Vânia", de Tchekhov, dirigido por Gil Vicente Tavares. Foto: Raul Spinassé / Ag. A TARDE
Em cena, um conflito familiar e humano, demasiadamente humano: um erudito professor de artes acaba de se aposentar, não pode mais morar na cidade, e decide pela vida pacata na fazenda. No entanto, não se adapta ao cotidiano no campo e decide se desfazer do patrimônio. Isso é motivo para um conflito entre cinco personagens.
Chegar em cena
Ao receber no colo a possibilidade de realizar um projeto cênico pela Companhia de Teatro da Universidade Federal da Bahia, Gil Vicente decidiu que era hora de criar um ponto em comum entre o seu antigo desejo de montar o texto, além de homenagear as décadas da trajetória de Gideon Rosa como ator fixo do grupo teatral da universidade. Seu primeiro espetáculo pela companhia foi A Caverna, montado em 1985. “Desde a primeira incursão, só tive privilégios na minha trajetória. Encontrei pela frente nomes incríveis, desde Paulo Dourado a Yumara Rodrigues, passando pelas parcerias com Harildo Déda, de altíssima qualidade, além de usufruir do conhecimento de Ewald Hackler, que ensina carinhosamente como um ator deve chegar em cena”.
"
"Há atores bons, atores ruins e Gideon Rosa. Pessimista que sou, acho que ele é uma espécie em extinção".
Ewald Hackler, diretor
Além do posto na companhia, Gideon teve produtiva carreira jornalística entre 1976 e 2000, passando por redações de veículos como A TARDE. Além de recolher prêmios na profissão de comunicador, venceu na categoria melhor ator do Troféu Bahia em Cena, por viver Lopakhine em O Jardim das Cerejeiras (1987), do mesmo Tchekhov de agora, mas com direção de Harildo Déda. Em 2005, ganha o Prêmio Braskem de Melhor Ator pela atuação no espetáculo Arte, de Yasmina Reza, dirigido por Ewald Hackler. Além disso, transitou pelo cinema, em trabalhos com Cacá Diegues e Walter Salles, televisão (da minissérie O Compadre de Ogum, na Rede Globo, até a novela Marcas da Paixão, na Record). Atuou como preparador de elenco, dirigiu o projeto Minutos de Poesia para o Irdeb, além de também ter coordenado o Ciclo de Leituras Dramáticas da Ufba.
Um ritmo incansável e cheio de vigor para uma retirada precoce? “Aos 50 anos, um artista está entrando na maturidade. Pronto para seguir em frente, não para recuar. E eu, por uma razão de saúde, tive que recuar. Isso é extremamente doloroso. O público às vezes não sabe, pode até ficar parecendo que são caprichos. Mas, não, não é. É uma limitação física. Um azar desses da vida, não é?”, responde.
Conta que o processo de ensaios tem sido fisicamente exaustivo, mas toda equipe oferece generosidade. As palavras da atriz Alethea Novaes, que vive a jovem esposa de Alexandre, na verdade, apontam mais para uma parceria entre elenco. Ela diz que reencontrar Gideon nesse trabalho tem sido uma alegria. “A abordagem dele para o papel, a compreensão das nuances, a ironia, o humor. Ele traz muitas camadas para o personagem. É um presente e um privilégio contracenar com ele”.
Volta ao começo
Desde que se afastou dos palcos e rotinas exaustivas de ensaios, Gideon voltou a transitar pelo município de Buerarema, no sul da Bahia, onde nasceu e morou até os 20 anos. Ao retornar para o interior, comprou um casarão no centro da cidade, para desenvolver, voluntariamente e respeitando os próprios limites físicos, ações educativas com foco na formação de crianças e jovens da comunidade local. Assim, surgiu o Instituto Macuco Jequitibá, que no mês de abril do próximo ano comemora cinco anos, oferecendo cursos e oficinas para a região.
“Essencialmente, o que me fez voltar para lá foi o desejo de difusão do conhecimento adquirido em um outro espaço. Eu sou um homem da roça. Mas foi essa cidade que me acolheu. Então, quando me retirei de lá, pensei: ‘Eu vou voltar’. Sinto que devo devolver um pouco para a comunidade onde eu estudei, onde eu fiz o meu primário, e tenho meus amigos de adolescência”. É assim que ele explica a escolha por continuar acompanhando os trabalhos em Buerarema, morando hoje em Itabuna.
Atualmente, o foco do instituto é um projeto de leitura que usa a contação de histórias como instrumento para a alfabetização de crianças da região. Os professores da rede municipal foram treinados para transformar os livros em objetos de desejo para os pequenos. Gideon vê a iniciativa como um movimento contrário ao que chama de distanciamento da letra. “Um dos mais graves problemas contemporâneos, para mim, é o afastamento dos livros. Não podemos esquecer que eles têm a capacidade de apresentar novos modos de pensar, provocar fantasias e nos transportar para outros mundos”.
Por ter essa visão de sua geração, o ator acredita que os profissionais envolvidos hoje com as expressões culturais, ou dedicados aos estudos em música ou cinema, por exemplo, precisa buscar fora de si as referências. “Eu realmente fico indignado com os meninos de teatro, que já estão na universidade, e não sabem quem é Dostoiévski. Quando falo dele, ficam todos paralisados. A juventude está cada vez mais arrogante. E a arrogância é diretamente proporcional à ignorância”, opina.
Boas parcerias
Ao longo de mais de três décadas de carreira, tendo trabalhado com diretores dos mais diversos estilos e abordagens cênicas, de Deolindo Checcucci até Fernando Guerreiro e Adelice Souza, dois trabalhos se destacam como parcerias marcantes: Os Pequenos Burgueses (2003), dirigido por Harildo Déda, e Arte (2004), com direção de Ewald Hackler. A recíproca de respeito é verdadeira, nos dois casos.
O consagrado ator e diretor Harildo Déda costuma dizer que, quando crescer, quer ser Gideon Rosa. “Vê-lo no palco, ou fora dele, me dá uma vontade de viver muito grande. E Gideon, além de ser um grande ator, é uma grande pessoa, alguém que admiro muito. Uma raça impressionante e a garra de fazer são as suas características fundamentais”, aponta o amigo de longa data.
Com Hackler, Gideon conta que teve a oportunidade de finalmente se galvanizar como um ator e como uma pessoa. “Ele é meu professor até hoje em aulas regulares. Hackler é um homem profundamente comprometido com o conceito de arte. Ele não permite que um ator seja jogado na fogueira. Lidar com cada oportunidade nova que um texto traz. Treina você para aquela linguagem especificamente”.
O diretor alemão é taxativo ao falar sobre o eterno aluno. Para ele, na Bahia: “Você tem atores bons, atores ruins e você tem Gideon Rosa. Ele tem uma compreensão perfeita de como o ator deve trabalhar os textos. Além disso, mantém uma ilusão fundamental: falar espontaneamente, como se toda noite em que está em cena fosse a primeira vez”, diz. “É isso que faz o teatro ser algo vivo. Como pessimista que sou, acho que ele é uma espécie de ator em extinção. Figuras como ele são cada vez mais raras”.
Com o olhar ao longe, pensando talvez sobre a sua experiência pessoal, ao final dos dois meses de ensaios com a equipe, como quem olha para os 59 anos de vida, Gideon Rosa diz que o teatro é uma amante exigente. “Ela não aceita desculpas, quer tudo de você. Eu estou aqui dando tudo que eu posso, para não me desculpar, mas é um processo doloroso. Mesmo as minhas pequenas vertigens são desafiadoras. Afinal de contas, o ser humano é arte. Precisamos disso para continuar a nossa história. É ela que agarra essa percepção e leva para a frente”.