A neurologista Jesângeli Dias diz que a melhor forma de prevenir a doença é adotar hábitos saudáveis e cultivar a alegria
No Brasil, cerca de 1,2 milhão de pessoas têm Alzheimer, e a cada ano surgem 100 mil novos casos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a previsão é que, com o envelhecimento progressivo da população, esse número dobre a cada 20 anos em todo o mundo. A neurologista Jesângeli Dias, atuante na área de neurologia do envelhecimento, conta quais são as primeiras inquietações dos pacientes diagnosticados com a doença no seu consultório. “O grande temor é ficar esquecido, perder a autonomia e dar trabalho para as pessoas. As famílias também têm muito medo. Você vai vendo aquela pessoa que ama perdendo as suas características e se tornando um estranho, sem lembrar de si mesmo”. Na entrevista, a médica, que é professora do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e especialista do Serviço de Neurologia do Hospital Português, também fala sobre o Alzheimer juvenil, que atinge pessoas entre 35 e 45 anos, e esclarece a relação da condição com outras doenças mentais, como a depressão.
Há casos de idosos diagnosticados com depressão e, logo depois, com Alzheimer. Existe alguma relação entre as duas doenças?
Existe. O que acontece é que os pacientes com Alzheimer são propensos a desenvolver depressão. E isso é um problema, porque às vezes, no início dos sintomas, as duas situações se confundem. Pode ser difícil para o médico diferenciar a depressão pura e simples de um Alzheimer que está começando. Algumas doenças neurológicas fazem isso. A doença de Parkinson, por exemplo, traz muitos sintomas depressivos. Então, a depressão pode aparecer, sim, como um sintoma de uma doença neurológica degenerativa.
No mundo, cerca de 50 milhões de pessoas sofrem com Alzheimer. Com o envelhecimento da população, a estimativa é que, em 20 anos, esse número duplique. Hoje, Salvador é a capital com maior número de idosos do Nordeste. Você acha que a cidade está preparada para acolher tantos idosos com a doença?
Não, a cidade não está preparada. A realidade é que, quando se tem essas estimativas, o sistema de saúde precisa se programar para aprender a lidar com esses pacientes. Acaba sendo um custo muito grande para a sociedade e para a família como um todo. Idosos com Alzheimer precisam ter uma pessoa para cuidar deles. Esse cuidador pode ser alguém que não é da família, mas há um custo financeiro de bancar isso, e não é barato. E também vejo casos de familiares que deixam o emprego ou pedem uma licença para cuidar do parente. Acredito que a cidade não esteja preparada porque existem outros problemas de saúde que no nosso país são mais presentes. E o Alzheimer é uma doença do envelhecimento, mas que pode acontecer em pessoas mais jovens.
É possível, nos estágios iniciais, confundir o Alzheimer com o processo natural de envelhecimento. Como perceber a diferença?
Existe uma condição que dentro da medicina a gente chama de transtorno cognitivo leve. É uma condição em que o paciente tem alterações cognitivas que podem aparecer sob a forma de pequenos esquecimentos. Guardar a chave e não saber onde colocou, conversar algo e esquecer, esquecer um compromisso… E também sob a forma de alterações sutis na linguagem, como esquecer nomes. Essas características podem ser naturais do envelhecimento, mas também podem ser sintomas de Alzheimer. O que diferencia uma situação da outra? Geralmente, quando aquele indivíduo apresenta um esquecimento natural, ele consegue recuperar depois. O paciente com um quadro de Alzheimer esquece e, às vezes, esquece inclusive que esqueceu. Mas o mais marcante para separar o que é normal da idade e sintomas da doença é quando o esquecimento começa a ser grave o suficiente para causar prejuízos na vida diária ou no trabalho. Quando a pessoa começa a tomar medicações trocadas ou esquece de tomar remédios. No começo, pode ser uma linha tênue e você pode nem conseguir diferenciar quem vai ficar no esquecimento normal e quem vai evoluir para a doença.
O que é o Alzheimer juvenil? Como percebê-lo?
Geralmente, esses casos da doença em mais jovens são geneticamente determinados. Na velhice não tem necessariamente influência genética, pode acontecer com uma pessoa que não tem nenhum caso na família. E o jovem nunca vai imaginar que tem Alzheimer. Vai começar a notar os sintomas, que podem ser na esfera da memória, uma dificuldade na linguagem, uma desorientação em relação ao espaço. Sair de casa e começar a se perder... Isso interfere no dia a dia da pessoa.
Há exames que, na juventude, já confirmam se a pessoa terá o Alzheimer hereditário na velhice. Há vantagem em saber o diagnóstico tão cedo?
Bom, descobrir que você tem uma doença que pode transmitir para o seu descendente é importante a partir da decisão se você vai querer ou não ter filhos. A única vantagem que eu vejo é essa. Se você tem a intenção de ter filhos e tem, por exemplo, 50% de chance de transmitir o Alzheimer, acaba assumindo o risco. Mas se a pessoa não tem esse desejo, eu não vejo muita vantagem em fazer. Eu acho inclusive que pode trazer um sofrimento muito grande. Não existe uma medicação para usar precocemente e interromper o desenvolvimento da doença.
Os medicamentos trazem que tipos de benefício no caso dessa doença degenerativa e sem cura?
Quando alguém recebe o diagnóstico de Alzheimer vai precisar tomar medicações para retardar o processo. Não são medicações curativas e não impedem que a doença evolua. O que a ciência mostra é que pode deixar o processo mais lento e manter a pessoa funcional por mais tempo, influenciando positivamente também em algumas alterações comportamentais que os pacientes apresentam.
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A pessoa não precisa perder a rotina porque sai do trabalho.
Para se manter cognitivamente saudável é preciso manter o convívio social, construir relações ricas
Jesângeli Dias
Vivemos numa cidade com índices de desenvolvimento humano díspares. A realidade de uma pessoa que sofre com Alzheimer muda de acordo com a estrutura financeira e familiar que ela tem. Como essas condições sociais influenciam no diagnóstico e tratamento da doença?
Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) há locais que se dedicam a atender esses pacientes. Temos isso no Hospital Irmã Dulce, Hospital das Clínicas e no Centro de Referência Estadual de Atenção à Saúde do Idoso. Então, há medicações de alto custo que são dispensadas para essa população mais carente. Às vezes, há uma irregularidade no fornecimento dessas medicações, que acontece também com outros remédios oferecidos pelo SUS, mas o programa existe. Nesses locais você pode contar também com o auxílio de um terapeuta ocupacional, assistência de neurologistas, geriatras. A questão é que a demanda é muito grande, mas é possível que as pessoas recebam a assistência. Mas é óbvio que viver com Alzheimer é mais difícil para pessoas com menos condições.
É necessário fazer adaptações na casa das pessoas que têm a doença?
É importante proteger esse paciente, evitar que ele se exponha a uma situação de risco. Num apartamento num lugar alto, é recomendado que a janela seja telada, porque o paciente chega num momento da vida que perde completamente a crítica. Ele vai funcionar mais ou menos como funciona uma criança. É preciso proteger, deixar produtos de limpeza fora de alcance, ter cuidado com o manuseio do fogão. A pessoa sozinha pode esquecer que deixou o fogão aceso e provocar um incêndio. Não deixar as medicações ao alcance, porque a pessoa pode tomar os remédios numa quantidade que não é a adequada.
Quando a gente fala em Alzheimer, discute muito o esquecimento. Há sintomas menos conhecidos?
A questão do esquecimento está relacionada principalmente aos fatos recentes. A pessoa faz uma viagem para Aracaju, por exemplo, e, uma semana depois, simplesmente esquece que viajou. Mas eles têm também uma perda da orientação temporal. De repente, perde a noção de data. Não sabe se situar no dia, no mês, no ano. Esses pacientes podem se perder. E se perdem inclusive no ambiente em que vivem. Vão ter dificuldades também em aprender coisas novas. Vivemos numa cidade em que o trânsito está sempre sendo modificado. Olhe o problema, a pessoa perde os referenciais antigos e não consegue adquirir referenciais novos, então, perde a capacidade de se locomover. Há também os distúrbios de linguagem, a pessoa esquece o nome dos objetos, começa a perder o vocabulário, que fica bem empobrecido. Não consegue comunicar as ideias, a expressão do pensamento fica comprometida. E também pode ter alterações no comportamento e na personalidade. Pode desenvolver uma ideia de que está sendo roubado, que o cônjuge está traindo. O mais comum é alteração da memória e a perda da noção de tempo e espaço. Mas há pacientes que podem abrir o quadro com modificação de comportamento e depois os sintomas de memória começam a aparecer.
Parar de vez as atividades cotidianas quando se chega à velhice – como deixar o trabalho – pode acelerar o desenvolvimento do Alzheimer?
É muito frequente os sintomas surgirem a partir do momento em que a pessoa se aposenta. Não é que o aposentar propicia isso. A doença já está ali, de uma forma latente. Todos os processos patológicos de perda de neurônio que vão levar à doença começam a acontecer muitos anos antes dos primeiros sintomas. Então, o que você imagina: parou de trabalhar, o paciente deprime porque perdeu a rotina. Mais adiante, começa a desenvolver os sintomas de Alzheimer. A gente diz que as pessoas precisam se preparar psicologicamente para aposentar, encontrar atividades que vão preencher a vida e ser inclusive prazerosa. A pessoa não precisa perder a rotina porque sai do trabalho. Para se manter cognitivamente saudável é preciso manter o convívio social, construir relações ricas. Isso acaba sendo um desafio para o cérebro, para o neurônio.
Quando uma pessoa está em um estado muito avançado de Alzheimer, a impressão é que esqueceu até dela mesma. Como é esse momento?
Ela realmente esquece quem ela é, perde vários dados autobiográficos da vida e pode começar a sofrer, por exemplo, com o falecimento dos pais que morreram há 20 anos. Ela sente a dor como se tivesse sido hoje. Chora e depois esquece. E passa também a não se reconhecer, vê a imagem no espelho e acha que é uma pessoa estranha. O Alzheimer é uma doença que vai apagando a sua história aos poucos. A pessoa começa perdendo as memórias mais recentes e depois as mais remotas. Ela pode conservar a imagem do companheiro quando jovem, e olha para a pessoa que está ali e não reconhece mais. São muitas perdas.
Há alguma forma de prevenção?
A gente diz que a melhor forma de prevenir é adotar hábitos saudáveis e cultivar a alegria. Se a pessoa é hipertensa ou diabética, é muito importante que ela controle. É bom fazer uma atividade física regular, porque exercitar o corpo também é exercitar os neurônios. Procurar ter uma vida social, muita interação. As pessoas mais isoladas podem ser mais deprimidas e propensas a desenvolver o Alzheimer.
Qual é o papel das famílias nesses casos?
É o papel de acolher, proteger e ajudar o indivíduo a passar por esse processo. No início dos sintomas, o paciente sofre muito porque tem uma certa percepção de que já não é mais o mesmo. Só vai perder essa percepção à medida que a doença avança. A família tem que estar junto, cuidando, e precisa ser muito paciente, conviver com uma pessoa com um quadro de alteração da memória é extremamente desgastante.