Quando se entra numa universidade e se começa a conhecer como ela funciona, quem são os grandes mestres, e se passa pelas primeiras provas, o convívio estudantil apresenta certos mitos. Não foi diferente na minha época: havia professores com fama de severos, outros engraçados, e por aí vai... Mas tinha uma professora¹, nas práticas dos primeiros laboratórios, que todos os estudantes temiam, pois o burburinho dos corredores afirmava que ela conseguia adivinhar quem simplesmente “inventava” dados, imaginando números, separando daqueles que efetivamente trabalhavam exaustivamente nos experimentos, extraindo resultados novos e originais.
Parecia ser algo sobrenatural. Perguntei a um grande professor, educador e matemático, Luiz Barco (n. 1939) se isto era possível. Com um sorriso maroto, respondeu afirmativamente, e que isto estava relacionado a uma lei da matemática, descrita de modo independente por Simon Newcomb (1835 - 1909), astrônomo e matemático americano-canadense, e Frank Albert Benford Jr. (1883 - 1948), engenheiro elétrico e físico americano (Superinteressante 74, 1993, pg. 45).
Basicamente, tal lei afirma que existe uma enorme chance de coletarmos números com os primeiros dígitos tendo mais um, dois, três, e menos sete, oito, nove. Isto parece ser a princípio contra-intuitivo, pois espera-se que os dígitos dos números se apresentem igualmente distribuídos. De fato, o senso comum indica que todos os dígitos deveriam apresentar uma mesma tendência (ou ainda mesma frequência), em particular no início de cada número. Não é o caso, como demonstrado por Newcomb e Benford.
Dito de outro modo, se tomarmos a folha de pagamentos de uma empresa mês a mês, não devemos esperar uma proporção aleatória dos primeiros dígitos, e sim uma maior frequência de dígitos um, dois, três, e muito menos dígitos sete, oito e nove. Pode-se também escolher qualquer tabela de números em qualquer livro ou jornal: a porcentagem de ocorrências dos primeiros dígitos em cada número deve seguir aproximadamente a regra: 1 (30,1%); 2 (17,6%); 3 (12,5%); 4 (9,7%); 5 (7,9%); 6 (6,7%); 7 (5,8%); 8 (5,1%); e 9 (4,6%). Quanto maior a quantidade de números avaliados, maior a correspondência aos valores destas porcentagens, relacionadas aos primeiros dígitos.
Tais exemplos pode servir para ilustrar como efetuar uma auditoria numa empresa e indicar ou mesmo detectar possíveis fraudes. Isto de fato vem sendo utilizado, ainda que timidamente no Brasil, e com mais intensidade no Hemisfério Norte.
Por exemplo, uma auditoria em obras públicas embasada na Lei de Newcomb e Benford foi efetuada e publicada em 2016 mostrando indícios de manipulação na obra de construção da Arena da Amazônia, edificada para ser utilizada como uma das 12 sedes da Copa do Mundo FIFA de 2014, e inaugurada em 9 de março daquele ano (Cunha et al. “Seleção de Amostra de Auditoria de Obras Públicas pela Lei de Benford”, IBRAOP: Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas). Grosso modo, verificou-se nas planilhas que os dígitos iniciais 1, 2 e 3 NÃO eram muito mais frequentes que os dígitos 7, 8 e 9. O Tribunal de Contas da União (TCU) já havia observado indícios de sobrepreço e consequentemente manipulação de valores nesta mesma obra. Em resumo, pode-se dizer que os números não mentem quando seguem a Lei de Newcomb-Benford.
*Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA
¹Dina Lida Kinoshita, física nuclear, escritora e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Atualmente é membro do Partido Popular Socialista (PPS).