Há um verdadeiro hino do carnaval que inicia assim: “Que bloco é esse nega / Que vem nesse Axé / É Traz a Massa / Oiê sou Aledé”... Esta bela canção, “Canto de Aledé”, do álbum “Energia”, lançada em 1984, correspondeu ao início do primeiro sucesso da consagrada banda Chiclete com Banana. Primorosa letra que contou com a bela voz do virtuoso guitarrista Edmilson “Missinho” de Amorim Ferreira (n. 1961), tudo ao ritmo suave e de cadência inebriante chamado ijexá.
Neste mesmo álbum encontra-se também a canção “O Mistério das Estrelas”, outro estrondoso sucesso, também de autoria do mesmo Missinho, cantada pelo carismático líder do Chiclete, Washington “Bell” Marques da Silva (n. 1952).
“Canto de Aledé” é uma singela homenagem ao Bloco “Traz a Massa”, um dos mais tradicionais do Carnaval de Salvador (www.blocotrazamassa.com.br), fundado em 1981 pelo empresário e carnavalesco brasileiro Aurelino Felix Nabuco dos Santos (c. 1954 - 2015), e que teve como primeira atração o mesmo Chiclete, lançando-o ao estrelato.
“Aledé” significa originalmente protetor ou defensor em iorubá. No Brasil também significa “bem vindo”, como numa saudação. Assim, a canção é um convite para a grande festa do carnaval. Curiosamente, em latim existe a palavra “laetus” que gerou o português “ledo”, significando aquele que demonstra alegria, felicidade ou contentamento. Há também em português o verbo “aledar”, que significa “alegrar”. A expressão “ledo engano” é bastante comum, e significa algo feito ingenuamente, sem intenção, de boa fé.
Massa consiste num dos conceitos cruciais da ciência, e peça-chave para a compreensão do universo. Refere-se grosso modo à quantidade de matéria, que junto com a luz e o vácuo, formam os ingredientes básicos de tudo o que existe à nossa volta. A unidade de medida da massa é o quilograma, basicamente um cilindro metálico de platina e irídio que equivale à massa um de litro de água muito pura sob temperatura de 15 oC. Este cilindro foi estabelecido em 1889 e se encontra no Escritório Internacional de Pesos e Medidas (“Bureau International des Poids et Mesures”: www.BIPM.org) em Sèvres, na França. Existe uma réplica do mesmo no Brasil, no Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (www.inmetro.gov.br).
Infelizmente, as cópias do quilograma-padrão ao redor do mundo têm apresentado pequeníssimas, mas ainda mensuráveis, variações de massa com o passar do tempo, algo indesejado para um padrão. É fácil de entender: má limpeza poderia acrescentar incrementos na massa; já a diminuição pode ser causada pela transmutação de elementos, como o irídio e a platina. A transmutação corresponde na verdade à uma modificação da estrutura do núcleo de alguns átomos – num processo aleatório e bastante natural, partículas como prótons e nêutrons são ejetadas destes núcleos, provocando a perda de massa no do sistema. Embora muito, muito pequena essa variação, é considerada indesejável para uma unidade de medida.
A partir do fim do ano de 2018 o sistema de massa utilizando o quilograma-padrão deixará de existir como referência mundial, dando lugar a outro sistema, muito mais preciso e confiável, que leva em conta uma grandeza fundamental da natureza, denominada constante de Planck. Após décadas de debates, os cientistas chegaram a esta conclusão.
Proposta em 1900 pelo genial físico alemão Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858 - 1947), laureado com o Prêmio Nobel em 1918, essa constante, representada pela letra h, estabelece uma simples relação entre a energia das partículas de um sistema (seja por meio da luz, ou fótons, ou de outra natureza, como elétrons), medida em joules, E, e a frequência com que elas vibram, v, medida em inversos de segundo. A expressão segue a famosa fórmula do universo quântico E = hv. O valor de tal constante é absurdamente pequeno: 0,0000000000000000000000000000000006 (algo como seis décimos de decilhonésimos ou ainda aproximadamente 6´10-34) joules-segundo, um número com 33 zeros depois da vírgula.
A relação entre esta constante, que trata de fenômenos do mundo subatômico, e a massa de 1 quilograma não é óbvia. Os cientistas basicamente propuseram um novo tipo de aferição de massas, denominada Balança de Watt, que funciona equilibrando dois pratos de uma balança a partir do uso de uma corrente elétrica. Uma massa de certo valor, que portanto possui um determinado peso (que é uma força),[1] é equilibrada por uma outra força, esta de natureza elétrica, basicamente o produto da carga elétrica vezes a corrente que passa neste sistema para contrabalançar o peso que se deseja mensurar. É possível também obter uma expressão matemática equivalente envolvendo corrente e tensão - em ciência e em engenharia, o produto da tensão elétrica pela corrente fornece uma unidade de medida chamada watt, em homenagem ao inventor e engenheiro mecânico escocês James Watt (1736 - 1819).
Medidas efetuadas em 2017 apresentaram um valor da constante de Planck h igual a 6,626070133×10−34 Js, com uma incerteza de 0,000000060×10−34 Js, um erro menor que uma parte em um bilhão. Tal balança foi renomeada há dois anos e agora é conhecida como balança de Kibble, em homenagem ao físico e metrologista inglês Bryan Peter Kibble (1938 - 2016), que conseguiu obter enormes avanços com este novo sistema de mensuração da massa.
O quilograma é, portanto, a última das sete principais unidades de medida ainda aferida com base em um objeto – a mensuração das outras já é feita há muitos anos por meio de constantes fundamentais da natureza. Esta nova forma de medir a massa não afetará o dia a dia das pessoas em mercados, açougues ou padarias. Mas certamente terá um impacto duradouro na ciência e na tecnologia, servindo para manter o conceito de massa, e respectivamente de peso, em dia.
*Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA