Promessa de vida
Cléo Martins
(às memórias de meus queridos José Laureano dos Santos, Ojé Lauô, e Elpídia Ialatoridé)
A gente testemunha tempos nebulosos e assustadores.
Os jornais, a internet, o rádio, a TV atestam o quanto este mundão de meu Deus está meio de cabeça para baixo, muitas vezes navegando sem rumo. É acidente, rivalidade, guerra étnica, tanta coisa, tanta coisa...
O Brasil enquadra-se na hedionda regra dos valores consumistas e cambiantes.
Mães abandonam com mais e mais freqüência as próprias crias vivas ao acaso podendo este chamar-se estacionamento, cemitério ou lata de lixo.
Chocante. Estarrecedor. Do mal, com letra maiúscula.
Há quem julgue ser o fim dos tempos.
Sabe-se lá. Seja como for, as tentativas de homicídio desses coitadinhos(as) pelas próprias genitoras são atentados contra a humanidade; tentativas de morte à esperança e, portanto, à plenitude da vida.
É violência contra o grupo familiar. E sem as famílias consangüíneas ou não ficamos fragilizados.
É revoltante; agressão à nossa natureza e de algumas outras espécies animais. Vivemos em um tempo onde o sagrado é história da Carochinha, a despeito da luta ferrenha mantida pelas pessoas de fé. O corpo humano e as relações afetivas estão cada vez mais profanados pela banalização e mau gosto.
Nos velhos dias as pessoas liam livros de papel e conversavam. Pessoalmente. Olhos nos olhos. Hoje, o costume em especial entre crianças e jovens é o chat pela internet. Olho no olho, quando existe, é por webcam.
Em outras épocas o verbo namorar transitivo direto conjugava-se com entusiasmo e dose de encantamento. Namorar era namorar.
Este verbo vem perdendo altitude e charme para ficar: de ligação, ao lado de ser, estar, parecer, permanecer... Daí, os crescentes casos de paternidade e maternidade irresponsáveis, incentivados por programas importados idiotizantes do tipo viva quem vence, de muitíssima audiência.
Abro parêntese.
A mídia é boa em sua essência; meio de educar o povo. Muitos cidadãos e cidadãs ouviram falar pela primeira vez no velho Juscelino este ano, por força da TV. Prazam os céus que as memórias não sejam varridas no próximo seriado da importante emissora.
Fecho o parêntese.
Mas ainda existem famílias que cultivam a esperança e estes grupos são responsáveis pelo futuro da Humanidade.
Sábado último vivi momentos raríssimos no lar de meus amigos queridos Domingas e Eurico, no IAPI, em Salvador. Horas de encantamento e magia; destas que exorcizam o mau humor de qualquer vivente. A cerimônia de noivado de Aline e Jorge, celebrada por Eurico, neto de nigerianos: Ojé Legilé, no culto egungun, do qual é antigo sacerdote. Também é oluô é exímio conhecedor da língua ioruba e cultura.
Partilho com vosmecês, prezados leitores e leitoras minhas impressões.
O casal (mais do que amigo, para lá de parente, gente acostumada a aturar filho dos outros; casa cheia) é responsável pela existência de prole numerosa. Colocaram no Aiê, a terra, sete filhos: Miriã, Rita, Zequinha, Eliene, Euriquinho, Eliana, Davidson. Com exceção do caçula- de quase um metro e noventa, ex-campeão de basquete, todos têm filhos. Rita já é avó, atribuindo aos meus amigos a condição de bisavós.
Os filhos de Rita Léo (Alex) e Aline moram em São Paulo. Lá, na companhia do avô, eu os conheci.
Léo, casado com Nádia, é pai de Juliane, a espertíssima garota de 4 anos, tão esperta quanto Cayala e Maniele, filhas de Eliene e Eliana, da mesma idade que a paulistinha.
Jorge, o noivo de Aline, é irmão de Nádia, a esposa de Léo. Vieram à Bahia, à residência dos avós, para o compromisso de noivado: algo quase que em desuso.
Tive o privilégio de testemunhar o pacto. O privilégio aumentou ao dar-me conta de que era a única pessoa sem laços consangüíneos ou jurídicos (nora, cunhada, irmã do genro ou da nora, etc). Minha ligação com Eurico e Domingas são nascidos, fortalecidos e retroalimentados no amor e liberdade. Considero-os também parte de minha família.
A cerimônia foi linda. Percebia-se a presença viva da herança africana. De gente que partiu mas continua em todos nós.
Léo, substituindo o pai ausente, iniciou o ritual. Foi sucedido pelo noivo e Aline, bastante emocionada. Todos falaram. Irmãos, irmãs, os tios Fiito e Vanda de Iansã.
Depois de fecundo discurso em duas línguas, Eurico abençoou as alianças em iorubá, entoando cantigas de bons desejos. Abriram-se champanhas; serviu-se lauta ceia e o bolo foi partido.
Contemplando todos e todas ao redor da mesa de madeira da ampla sala de jantar, dei-me conta que ainda existem aqueles e aquelas que acreditam na força da vida que lhes corre no sangue; amam e respeitam seus mais velhos e a própria ancestralidade: sementes e raízes.
Isso é esperança, fé; promessa de vida, que, assim, acima de crenças e dogmas, será eterna, minha gente!
Cléo Martins (agbeni@terra.com.br) Agbeni Xangô e Iyagan, é advogada militante e escritora