O sistema de cotas e o caso da Ufba:
a Resolução nº 1/2004 em revista por um Direito Afirmativo
Henrique Quintanilha
Complementando o teor de nosso artigo publicado nesta coluna em 31.1.2005, intitulado O Sistema de Cotas no Direito Brasileiro, pelo qual traçamos a síntese evolutiva das ações afirmativas no Brasil, vimos por ora impingir considerações relevantes acerca da ação propugnada pela Universidade Federal da Bahia, mediante a norma da Resolução nº 1/2004 de seu Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, que rendeu mais de uma centena de writs of mandamus impetrados na Justiça Federal da Bahia.
Pela oportunidade que nos foi concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, encampamos pesquisa jurídica voltada para o estudo do instituto das ações afirmativas, mormente para a prospecção do modelo implantado pela Ufba, a partir de análise dos julgados pertinentes, da doutrina autorizada e jurisprudência pátria, de fundamental valia para o desenvolvimento e conclusões tecidas em nossa recente monografia de final de curso nominada Ações Afirmativas no Direito Brasileiro: A Repercussão Social do Sistema de Cotas e o Caso da Ufba Efetivando direitos mínimos e (re)construindo a cidadania, que fora aprovada com distinção e recomendada à publicação pela banca examinadora formada pelos doutores Saulo Casali Bahia e Celso Castro e pelo mestrando Rafael Barretto.
Neste trabalho, em que a análise de dados sociais foi curial, valemo-nos do método estatístico referendado pela Suprema Corte dos EUA na fundamentação de discriminação autorizada pelo direito, quando, ao analisarmos as respostas dos candidatos ao questionário socioeconômico e cultural do Vestibular Ufba 2005, verificamos que:
No curso de medicina, tem-se 88 aprovados pelas vagas normais, à base de 72 pelas cotas. Já em direito, são 110 não-cotistas para 91 cotistas. Para melhor apreensão dos dados, serão doravante chamados de grupo C (cotistas) e grupo N (não-cotistas), ambos grupos aprovados no certame.
Em direito, a) enquanto 85 de N têm celular, apenas 58 do C possuem este aparelho; b) enquanto 97 de N têm computador em casa, apenas 51 de C o têm; c) enquanto 27 de N têm carro próprio, somente 11 de C o têm; d) na proporção de 34 brancos para 72 pretos/pardos autodeclarados em N, estão 11 para 72 em C; e) enquanto a quase totalidade dos integrantes de N, isto é, 107, são sustentados pelos pais, apenas 12 de C o são; e) por fim, enquanto 108 de N são solteiros, apenas 82 de C ainda permanecem sozinhos.
Tais dados remetem a uma visível noção de disparidade social, econômica e cultural entre aqueles grupos avaliados, o que não é diferente quando analisados na Faculdade de Medicina. Senão, vejamos:
a) N: 68 têm celular. C: apenas 43 têm; b) N: 74 têm computador em casa. Em C: só 44 têm; c) N: 31 têm carro. C: apenas 14 têm; d) N: 25 são brancos. Em C: apenas nove declararam-se desta cor; e) em N: 75 são sustentados por pai ou mãe. Em C: apenas 61, sendo quatro auto-sustentados; f) Em N: 85 ainda são solteiros. Em C: apenas 66.
Ainda no que tange ao substrato factual a justificar a adoção das cotas na realidade soteropolitana, a partir de questionário por nós aplicado em pesquisa de campo, temos que a maior parte dos estudantes ingressos pelas cotas e, assim, oriundos de escolas públicas, advém do liceu Cefet e escolas militares, isto é, centros considerados de excelência do ensino público, onde, pelos indícios observados a partir de nossa investigação, não haveria hipossuficiência financeira a sustentar a adoção de um critério de beneficiamento em favor desses grupos. Tal evidência, frisamos, revela a falta de proporcionalidade stricto sensu no que toca a esta parte do critério estabelecido.
Ademais, dentre os calouros de direito inquiridos e declarados cotistas, 46,7% estudaram o nível médio em escola corporativa (militar), 26,7% são oriundos do Cefet e neste mesmo percentual são os que se afirmaram egressos da escola pública comum, valendo ressaltar que destes, metade adveio da conceituada instituição de ensino estatal Thales de Azevedo.
Em que pese a desconformidade de tais critérios de discriminação positiva a que se vale a citada resolução instituidora das cotas, a servir de base para futura derrogação do Ato, esta fora editada com fulcro no princípio constitucional da dignidade humana, objetivo fundamental da República (art. 3º da CF), e com esteio na autonomia universitária insculpida no art. 207 da Charta, ao contrário do que intentam em juízo os que foram preteridos das vagas reservadas. Esse é o fundamento que prevalece nos julgados locais, quando se vê que, em 116 mandados de segurança impetrados até meados de 2005, 71 pedidos de liminar para determinar a matrícula imediata foram indeferidos.
Tivemos a oportunidade, ainda, de acompanhar diversos feitos, desde sua postulação até o julgamento, quando pudemos observar a diretiva da primeira instância em denegar tais pedidos como orientação majoritária, a acompanhar o entendimento já esposado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em face às cotas instituídas pioneiramente pela Uerj, e à direção já indicada por julgados do TRF da Primeira Região em sede de Suspensão de Segurança.
Como argumentos contrários ao novo sistema, sobressaem a reserva de lei federal para tratar da matéria (o que não autorizaria a edição de norma administrativa); a violação à isonomia (tomada meramente em seu corte formal); a mitigação do subprincípio da Gestão Democrática do Ensino (art. 206, VI, da CF); que em não havendo raça não haveria racismo, bem como a insubsistência de critérios de cor como parâmetro para beneficiar determinados grupamentos (o argumento color blind). Ainda, aduz-se o vício formal na Norma afirmadora, ao ferir ditame de resolução prévia (nº 01/2002), segundo a qual qualquer alteração nas regras do vestibular deve se dar com antecedência mínima de um ano.
Quanto às alegações materiais, tem-se por insustentáveis, vez que desconhecem a amplitude do conteúdo jurídico da igualdade, bem definido nas exatas palavras de Rui: A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. A igualdade material ressalta-se, nestes termos, a fim de promover, pelas normas de Direito Afirmativo, a correção do sistema jurídico lastreado em dispositivos cegos às diferenças sociais e econômicas dos destinatários, a fim de consignar-lhes iguais condições de partida, ou, como prefere Guilherme Dray, igualdade de condições e não apenas de oportunidade. Já no que concerne ao contra-argumento de matriz formal, temos que se trata de normas de hierarquia idêntica, aplicável, portanto, o instituto da revogação.
Na mencionada monografia, partimos dos fundamentos das ações de afirmação, sobremaneira da teoria do impacto desproporcional que as explica, passando pela distinção em relação aos termos discriminação positiva, políticas e medidas afirmativas; análise da díade raça e racismo; proporcionalidade do critério ajustado; até a formulação do que chamamos de esquema de justificação, modelo teórico a identificar situação fática de desigualdade justificadora de tratamento plúrimo em favor de indivíduos integrantes dos grupos de sobrecarga. Por fim, sugerimos a delimitação do Direito Afirmativo, como campo jurídico dotado de autonomia, provisoriedade, materialidade e adjetividade, já que, necessariamente, as ações afirmativas apenas se manifestam e se fazem cumprir por via de norma jurídica.
Concluindo pela constitucionalidade das políticas afirmativas no Brasil, e, desta feita, do modelo adotado pela Ufba, ressalvamos em parte o critério utilizado por esta Universidade no que toca ao beneficiamento de grupos não presumivelmente pobres, provindos de instituições de excelência do ensino médio, consoante revelam nossas pesquisas, o que vem contribuir para a urgente revisão da referida medida.
De lege ferenda.
Henrique Luiz Lopes Quintanilha é bacharel em direito pela Universidade Federal da Bahia, servidor do Tribunal Regional Eleitoral e-mail: hlquintanilha@yahoo.com.br