Questão de fundo (IDH) 1ª parte
José R. A. de Santanna *
Como é do conhecimento geral, o Brasil ocupa os piores lugares, no mundo, quando avaliado, por exemplo, pelo Índice de Desenvolvimento Humano. Evidentemente é um vexame, ainda mais que esta situação coexiste obscena e promiscuamente com setores minoritários onde a renda e a riqueza nacionais são concentradas. Na apuração de tal indicador levado a efeito pelo ONU, entre variáveis diversos, sobressaem como componentes de peso a expectativa de vida, a renda per capita e o nível educacional do país considerado. A característica decisiva do rumo que o Brasil segue (...) é o aviltamento do trabalho e a queda da participação dos salários na renda nacional.
Mesmo quando a produtividade aumentou, e o salário regrediu, (...) tragicamente esse neo-escravagismo apresenta-se travestido de racionalidade econômica. (...). Com raras exceções, negros e pardos convivem com a mesma realidade em quase todas as profissões, no Brasil: ganham menos que seus colegas brancos. (...) A dificuldade na análise das diferenças salariais por cor ou raça é determinar até que ponto isso é fruto de racismo ou de condições desiguais no acesso à educação ou ao mercado. (...) A explicação corrente para essas diferenças é que existe discriminação contra os negros. O ilustre advogado Eurípedes Brito Cunha, em seus comentários sobre A nova Lei de Falência e o Direito do Trabalho, dissecando muito de suas graves contradições às quais, sem negar méritos, que a mesma: (...) teve a finalidade de proteger os estabelecimentos bancários portadores de créditos com garantias reais, protegidos acima de todos os demais credores. (...) Certamente provocará grande rebuliço no meio forense, inclusive com argüições de inconstitucionalidade, à vista da garantia conferida aos direitos sociais dos trabalhadores e desprezados pelas novas regras. (...) Este é um retrato da nova Lei de Falências frente aos direitos dos trabalhadores que passam a ser credores de segunda, mesmo em relação aos seus salários, constitucionalmente protegidos. É evidente que subsiste claramente em disposições dessa natureza em nítido prejuízo para quem se constitui a massa esmagadora dos trabalhadores se olharmos em que conjunto de população eles se encontram.
Vejamos agora, por sua vez, o que diz Manoel Jorge e Silva Neto, inclito procurador do Ministério Público do Trabalho, professor-doutor da Ufba em seu ensaio Discriminação no emprego: (...) o preconceito é uma realidade muito presente nas relações de trabalho. Por exemplo, a sociedade brasileira, que tece loas, com desfaçatez, à sua democracia racial, não concretiza a tolerância à diversidade. Basta um rápido exame do que acontece nas empresas. Seja no momento da admissão, seja promover empregados, encontra-se, com infeliz habitualidade, a adoção de critérios francamente discriminatórios e ilegítimos. (...) É necessário fazer com que as pessoas, dentro da empresa e fora dela, admitam a diversidade. (...) há só uma, e apenas uma solução para o problema da discriminação no emprego no Brasil: a mudança da cultura empresarial que não virá isolada, mas como reflexo da generalizada tolerância à diversidade.
Já a conceituada jornalista global Mirian Leitão, em recente visita a trabalho exatamente em nossa velha de guerra Salvador, produziu a matéria publicada na imprensa local sob o título curioso: Por que há poucos negros nas lojas? Do seu rico e oportuno texto pode-se destacar: (...) Veja-se, por exemplo, os negros.
Eles não estão em inúmeros lugares em que seria normal que estivessem. O que me fez ter esta noção foi a pergunta de um banqueiro americano.
Ele quis saber qual era o percentual de negros na
população brasileira. Ouviu que era 46% e perguntou: Onde é que eles estão? Esta é a pergunta que qualquer brasileiro branco deve se fazer. (...) Isto faz com que os 13% de negros, que eles têm, sejam visíveis na elite americana e os nossos 46% sejam tão invisíveis. (...) O que você me diz disto? É ou não é discriminação racial? Outro estudo do Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que analisou a desigualdade racial foi feita em 2001 por Ricardo Henriques, hoje secretário da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação. Henriques comparou a escolaridade de negros e brancos desde 1929 e, ao constatar que não houve diminuição na distância em anos de estudo, concluiu que as curvas parecem construídas com intencional paralelismo, descrevendo, com requinte, a inércia do padrão de discriminação racial observado em nossa sociedade. Todo e qualquer estudo ou levantamento minimamente sério e/ou substancioso sobre esta dolorosa e encravada questão entre nós revela sem rebuços a espantosa taxa de exclusão social no Brasil, que desgraçadamente, sua desigualdade, tem cor e descamba a olhos vistos para uma vitimização preferencialmente para jovens, pobres e negros.
Como muito bem observa o sempre oportuno e preclaro mestre, professor-doutor Edivaldo M. Boaventura, em mais uma de suas intervenções favoráveis às ações afirmativas e cotas, na condição de orientador do procurador da República, Sidney Madruga em sua dissertação: Discriminação positiva: ações afirmativas e realidade brasileira, edição de Brasília Jurídica, 2005: É, certamente, o primeiro trabalho de análise que se produziu, na Bahia, sobre o tema, com especial destinação para a polêmica das cotas. (...) Assim como o Brasil é tido como o último país do Ocidente a abolir legalmente a escravidão, do mesmo modo, chega bastante tarde a adotar com resistência as cotas para o ingresso na educação superior. Há antecedentes da reserva de vagas quando o governo Vargas garantiu a presença mínima de dois terços dos brasileiros natos em empresas. É a lei de nacionalização do trabalho de 1930. Mais recentemente, tivemos a Lei do Boi, que criou uma reserva de vagas em cursos de ensino médio agrícola e superiores de veterinária e agronomia para candidatos agricultores ou de seus filhos.
A parte II do artigo será publicada amanhã
* José R. A. de Santanna
Advogado, professor da Faculdade de Direito da Ufba, 2º diretor-secretário da Anaad Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes