Eu já pago a comida deles, não vou pagar pelo trabalho. Esta frase chocou a diretora-financeira do
Projeto Arte que Liberta, Kátia Freitas, quando tentava vender a produção dos presos da Penitenciária Lemos de Brito (PLB) a uma empresa. Ela conta que a reação é comum, e constitui a maior dificuldade enfrentada pela ONG. Temos clientes fixos como a Petrobras, que dá maior parte do apoio e compra os itens para brindes e decoração, mas conseguir comprador é muito difícil, lamenta.
O preconceito é apontado também pelo promotor de Justiça de execução penal Geder Gomes, titular do conselho Nacional de Política Carcerária, como um dos entraves à ampliação do trabalho prisional em presídios baianos. Entretanto, destaca que falta uma divulgação das vantagens para as empresas, entre as quais estão a isenção de encargos sociais, a economia com água, luz, aluguel, vale-transporte e vale alimentação tudo a cargo do Estado. Na verdade, não precisa que a empresa venha em busca da atividade filantrópica, mas pelo seu próprio lucro, enfatiza Gomes
Para os presos, as vantagens são incontáveis. Muitos têm uma profissão pela primeira vez na vida, recuperam a auto-estima, têm uma remuneração e a possibilidade de remissão da pena, diminuída em um dia para cada três trabalhados, e ocupam a mente que poderia estar voltada para a revolta e sentimento de vingança do mundo. Além disso, o tempo passa mais rápido.
Cooperativa
Fugindo do tempo, pior inimigo de qualquer encarcerado, o interno Antônio Fernando de Albuquerque, de 42 anos, passou os 7 anos dos 12 anos de pena que deve cumprir trabalhando. Dentre as atividades que exerceu, trabalhou na limpeza das celas, com artesanato e até alfabetizou Antes ator e diretor e teatral, ele conta que, quando sair da PLB, vai aproveitar as oportunidades.
Condenado por aliciação de menores, ele diz que não se revolta contra o preconceito, mas tentará mudar seu próprio destino. Para isso, aproveitará a primeira porta aberta que terá pela frente: a primeira cooperativa de egressos do sistema prisional no Brasil. O projeto é mais um aporta para alguns, mas é a única porta para quem nunca teve nada, reflete.
Fruto da ONG Arte que Liberta, a cooperativa instalada há três meses já tem dois componentes. Um deles é José Atayde Cruz, 48. Ele cumpriu 4 anos e meio de reclusão por estupro, que jura não ter cometido. Atayde considera-se recuperado, graças ao que aprendeu no projeto. Depois de ser beneficiado com o regime semi-aberto em que podia sair do presídio para trabalhar e só voltar à noite, preferiu permanecer entre os muros da PLB. Porque este projeto é uma benção, só mesmo para ajudar as pessoas, justifica.
Apesar de já ter uma profissão em que era bem-sucedido antes da condenação ele era chef de cozinha e trabalhou para bons restaurantes é na produção de velas que pretende trabalhar daqui para a frente para sustentar os quatro filhos. Qualquer tipo de vela, eu faço, garante, orgulhoso. No Arte que Liberta, ele chegou a ser promovido. Eu era o encarregado das velas, recorda.
À espera de um local para instalar a oficina de velas, o ex-chef de cozinha optou por receber um salário mínimo da ONG enquanto a cooperativa não inicia as vendas, mesmo com ofertas de emprego mais atraentes. Segundo Atayde, a oportunidade de ajudar os colegas que passam pela mesma situação é o maior incentivo. Quem sai daquele lugar sem nenhum apoio da família e de outras pessoas, não tem como não voltar.
O ex-presidiário exalta o Arte que Liberta e credita à ONG sua recuperação. O governo em vez de fazer mais penitenciárias e delegacias, deveria investir nesse tipo de projeto, opina, definindo-se como um cidadão praticamente livre. Feliz e cheio de planos para a nova empreitada, Atayde revela o legado do tempo que passou no presídio e que gostaria que servisse também para mudar o julgamento que a sociedade faz dos ex-detentos: Aquilo é um inferno, mas o passado não me deixou marcas.