Os vários evangelhos
Walter Barreto de Alencar
Em 1945, lavradores escavando num antigo cemitério de Nag Hammadi, no Egito, encontraram potes de barro contendo textos de um Quinto Evangelho Segundo o Apóstolo Tomé, e que confirma o conteúdo dos quatro anteriores, posto que apenas apresente aforismos cristãos, ou seja, sentenças morais breves e conceituosas, em lugar de narrar a vida de Jesus. Esse evangelista enfatizou a parte espiritual do Cristo, em lugar da parte humana de Jesus. É compreensível que só agora, neste mundo mais amadurecido, tenha aparecido este Evangelho que prioriza a verticalidade crística sobre a horizontalidade humana. O mundo espiritual sabe das coisas, e age no momento tempestivo.
Lamentavelmente, parte desses preciosos pergaminhos foi queimada pelos camponeses que os encontraram, para fazerem fogo. Antes mesmo do encontro desses papiros em língua copta, já havia uma edição desse Evangelho em língua grega.
Mais escritos foram encontrados em 1947, perto da fronteira entre Israel e a Jordânia. São os Manuscritos do Mar Morto e poderiam ter pertencido aos essênios ou esseus, no seio dos quais especula-se que Jesus teria vivido dos 12 aos 30 anos e deles recebido influência. Outros admitem que ele teria passado esse tempo na Índia.
Os pesquisadores variam muito na fixação das datas em que foram escritos os evangelhos, abrangendo uma faixa de 40 a 120 anos d.C. Nesse caso, há pouca probabilidade de que teriam sido escritos pelos contemporâneos de Jesus, já que a longevidade humana, na época, não alcançava tais números, e ainda considerando-se que eles já eram adultos quando acompanharam o Rabi.
Há remota possibilidade de o de Marcos haver sido escrito pelo próprio. Em assim sendo, as narrativas dos evangelistas teriam chegado, por tradição oral, aos escribas que teriam dado forma aos textos. É possível que Lucas tenha sido o único a escrever de próprio punho; porém, ele não conviveu com Jesus. Vejamos o que ele nos diz: Conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles (dos fatos) testemunhas oculares, e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem (Luc. 1: 2/4).
Lucas, como médico, deveria ser alfabetizado. Mateus, talvez o fosse também. Quanto a Marcos e João, é possível que fossem analfabetos. Até a Idade Média, a alfabetização era privilégio de poucos, e não atingia nem mesmo todos os senhores feudais. Principalmente aos monges copistas, nas clausuras dos mosteiros, cabia a tarefa dos registros gráficos. Aqui no Brasil, muitos negros escravos, de classes sociais elevadas nos seus países de origem, possuíam mais cultura do que os seus senhores portugueses analfabetos, aos quais prestavam os serviços de escribas e contadores. A Europa foi alfabetizada pelo Protestantismo, quando determinou o dever de todos lerem a Bíblia, e para isso era necessário aprender a ler. Nesse trabalho, contou com a antecedência de Gutemberg.
MATEUS LEVI o publicano como funcionário do fisco, servia na aduana de Cafarnaum. Publicanos eram, na antiga Roma e colônias, os arrendatários de impostos (rendimentos públicos, daí o nome publicano) ao governo e que se encarregavam da cobrança. Na França antiga, chamavam-se arrematadores de taxas. Não se sabe, ao certo, se Mateus foi realmente publicano ou apenas portageiro (cobrador de categoria inferior que subarrendava e operava no varejo), uma vez que o termo era indiscriminadamente aplicado de maneira pejorativa a todos os que desempenhavam esse ofício. Não se sabe, com segurança, se ele fora o titular da exatoria, ou apenas um subalterno amanuense, isto é, funcionário público de condição modesta, ou do quadro de apoio, ou até mesmo da limpeza, embora Lucas o chame de publicano. Dessa forma, não se conhece o seu grau de instrução. Judas Iscariotes é tido como o mais instruído e politizado, entre os 12.
Alguns autores negam a Mateus a fidelidade de testemunha ocular, colocando-o mais como servidor aos princípios dogmáticos dos cristãos do século I. Nesse sentido, acentuam-lhe a condição de publicano (ou ex-publicano) para diminuir-lhe o mérito, contestando-lhe até a autoria do Primeiro Evangelho. Partindo Jesus dali, viu um homem, chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu (Mat. 9: 9; Mar 2: 14; Luc. 5: 27, 28). Se fora capaz de abandonar tudo, como diz Lucas, talvez um emprego ou negócio vantajoso e seguro, para acompanhar o Mestre, a um simples chamado, é porque já possuía bom cabedal de crescimento íntimo, boa dose de maturidade espiritual, patamar ainda não alcançado por aquele moço rico que procurara Jesus em busca da salvação.
MARCOS, conquanto morasse em Jerusalém, era estrangeiro, provavelmente de Chipre. Como sobrinho de Barnabé, primo de Paulo e amigo inseparável de ambos, acompanhou-os em várias viagens apostólicas, incluída a de Roma. Tornou-se amigo íntimo e intérprete de Pedro que pouco conhecia do idioma grego a ponto de este chamá-lo de meu filho (I Ped. 5: 13). É amplamente admitido que as epístolas de Pedro foram ditadas para ele escrever. Além do grego, falava latim, hebraico e sírio, mas não se sabe se dominava esses idiomas por música ou tocava apenas de ouvido, isto é, se falava um inglês de Oxford ou do cais do porto. Nem mesmo se tem certeza de que fosse alfabetizado. Seu latim poderia ser de subura (sermo plebeius), e não literário ou do fórum (sermo urbanus). Teria conhecido pessoalmente Jesus, e sua casa, que era freqüentada por Pedro, foi praticamente convertida num templo disseminador da doutrina. Há quem acredite haver sido ele o jovem que presenciou, com muita angústia, a prisão e flagelação do Rabi, e, no cortejo ao Calvário, fugiu despido à perseguição dos algozes. Seguia-o um jovem, coberto unicamente com um lençol, e lançaram-lhe a mão. Mas ele, largando o lençol, fugiu desnudo (Mar. 14: 51, 52). Outros, porém, admitem que ele não conheceu Jesus e que organizara seu evangelho por informações de Pedro, traduzindo a visão desse apóstolo.
LUCAS é considerado como o mais culto dos evangelistas. Além do Terceiro Evangelho, escreveu os Atos dos Apóstolos. Era médico em Roma e filho de médico imigrado da Grécia como escravo, ulteriormente alforriado, em face da profissão que exercia. Segundo outros, seu pai seria guarda-livros. A primeira hipótese parece ser mais consistente, porque o imperador Júlio César concedera alforria e cidadania romana aos que exerciam a profissão de médico. (Também o notável médico estrangeiro Cláudio Galeno obtivera cidadania romana e admissão na corte de Marco Aurélio). Tornou-se amigo de Paulo, a quem acompanhava como médico e discípulo. Exerceu a medicina também em Antioquia terceira mais importante cidade do Império Romano, depois de Roma e Alexandria, no Egito onde deve ter conhecido Paulo. Converteu-se ao cristianismo, a cuja causa e propagação se dedicou intensamente no mundo greco-romano.
JOÃO EVANGELISTA, assim como Pedro, era iletrado e inculto (Ato. 4: 13), e cognominado ou apelidado de Marcos (Ato. 12: 12, 25; 15: 37). Considerado o apóstolo predileto do Cristo, era pescador na Galiléia, juntamente com seu irmão Tiago, profissão que herdaram do pai Zebedeu que não parecia ser muito pobre, pois que possuía empregados no seu negócio (Mar. 1: 20). Sua mãe foi uma das dedicadas mulheres que acompanhavam e serviam a Jesus na Galiléia e o seguiu até o Gólgota (Mar. 1: 40, 41). De temperamentos explosivos, eram os dois irmãos chamados de Boanerges (filhos do trovão ou filhos da ira), no meio dos apóstolos. Certa feita, numa aldeia samaritana, foi negada pousada ao grupo. Os dois perguntaram a Jesus: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir? Jesus os repreendeu (Luc. 9: 54, 55).
Em outra ocasião: Disse-lhe João: Mestre, vimos um homem que em teu nome expelia demônios, o qual não nos segue; e nós lho proibimos, porque não seguia conosco. Mas Jesus lhe respondeu: Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e logo a seguir possa falar mal de mim. Pois quem não é contra nós, é por nós (Mar. 9: 38/40. Luc. 9: 49, 50). Que bela lição de ecumenismo, tolerância, superioridade, condenação a rotulagens e a discriminações ministrou o Mestre naquele instante, e nós ainda relutamos em aprendê-la! Em outra oportunidade ele disse: Quem não é por mim, é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha (Luc. 11: 23).
Ao que se saiba, João foi o único discípulo que acompanhou de perto o Paráclito nos seus derradeiros momentos, permanecendo diante da cruz até o fim e tendo ali recebido de Jesus a incumbência de cuidar de Maria, a mãe amorosa e dedicada.
Ele e Pedro não entenderam, em princípio, a clarividente posição de Paulo de desjudaizar e universalizar o cristianismo, contra quem se insurgiram no início da expansão. Posteriormente, alcançaram e aceitaram a lúcida diretriz do Apóstolo dos Gentios. Juntamente com Pedro, foi escolhido por Jesus para segui-lo após a ressurreição (João 21: 19/23). Foi o único evangelista que não teve morte violenta. Por alguns é chamado de o evangelista pneumático, isto é, do pneuma, da alma, enquanto os outros três são chamados sinóticos pela identidade do conjunto e semelhança das versões.
Há quem considere, cumpre-nos registrar, que João Evangelista teria vivido por volta do ano 100. Nessa hipótese, não seria o mesmo João discípulo dileto a quem Jesus confiara Maria e, portanto, não teria sido testemunha ocular dos fatos.
(Extraído do livro Reflexões sobre a Doutrina Crística, de autoria do articulista)
Walter Barreto de Alencar
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