Começo do ano
Pereira de Sousa
Por mais que queiramos iludir-nos, estamos em 2006, a caminho dum futuro que todos querem repleto de felicidade. Começo de ano no calendário, mas início de árduos trabalhos, manuais ou intelectuais. Início de ano, mas por onde começar? A resposta a esta pergunta será de difícil formulação, tais as diferenças de caracteres e de propósitos desses a que chamamos homens.
Uns nem sequer desejam trabalhar com afinco na própria construção da sua personalidade. Outros querem trabalhar, mas não encontram emprego e vivem ao léu da sorte, chorando e vendo os familiares desmilingüirem-se a olhos soltos. E grande porção ainda não pensa sair do seu doce fazer nada. E há minoria que blasfema contra o trabalho. De um ouvi, maldito seja quem inventou o trabalho.
Parece impossível que se tenha esquecido do que Deus mandou aos primeiros homens, multiplicai-vos e enchei a terra e depois num rasgo de amor plantou vergel, o jardim do Éden e mandou que o alinhassem ainda mais.
Depois da queda, Deus teve tanta pena do casal transgressor que lhe propôs um possível salvador na descendência da mulher. Não obstante isso, o castigo foi duro, com o suor do teu rosto amassarás o pão. E à mulher impôs terrível sujeição ao homem e dores no parto. Trabalho e dores, trabalho e desesperanças. Mas não lhes tirou a vida. Expulsos do paraíso e guardada a entrada por um anjo de espada flamejante. Mas continuam vivos e de borco em borco (atenção, é borco), como cantou Correia de Oliveira irão caminhando rumo ao futuro.
Começo de ano, propósitos alados de sermos melhores servos de Deus do que fomos no passado? Ótimo projeto. Melhorar nossas relações com os irmãos, vizinhos ou não vizinhos, mas todos filhos do mesmo Pai dos céus.
Melhorar nossos trabalhos da quotidiana vivência? Ótimo. Mas vejamos quantos projetos dos anos passados ficaram na intenção e ainda nos arrependemos de não irem avante tais projetos, por inépcia ou até preguiça incorrigível. Muito bem nos explica o catecismo que a preguiça é um dos pecados capitais, isto é, fonte ou cabeça de muitos outros.
No entanto, devemos começar, é muito bom que comecemos. Que tal vermos os planos dos anos transatos e voltarmos a eles com redobrada insistência? De qualquer modo, comecemos este novo ano firmados na graça de Deus. A graça, só a graça nos ajudará a superar incríveis contrariedades. S. Paulo, o apóstolo cheio de trabalhos pelo rebanho de Cristo, exclamava com toda a humildade: Mas pela graça de Deus sou o que sou, e sua graça a mim dispensada não foi estéril (1. Cor. 15, 10).
A seguir, no mesmo capítulo, Paulo diz a verdade que poderá escandalizar a alguns, mas é a verdade e da verdade ninguém se pode escandalizar. Ao contrário, trabalhei mais do que todos eles, não eu, mas a graça de Deus que está comigo. Tudo em Paulo é graça. Tudo em nós deve ser a graça. Por isso, comecemos o ano sob as bênçãos do Senhor, e jamais atribuamos méritos a nós próprios, mas demos sempre lugar para a graça de Deus que nos trouxe até aqui e quer persistamos nas boas obras sempre para glória de Deus. Começo de ano. Por onde começar? A graça de Deus nos inspire e ajude em tudo e sempre.
Moral universal
Walter Barreto de Alencar
Acatamos que Jesus veio à Terra unicamente para divulgar a moral divina pela pregação e exemplo, e não para pagar nossos pecados, que terão de ser pagos por quem os cometeu. Ele é nosso redentor no sentido de haver-nos apontado o caminho único da redenção. Só isso; e já não é pouco.
Quando disse: Eu sou o caminho..., estava afirmando que o caminho único é esse, o da doutrina divina, que não é criação nem propriedade sua, mas que a vivencia de tal modo a confundir-se com ela, numa simbiose perfeita, isto é, em associação íntima de completo entendimento.
Para propagá-la, Deus há-se servido de muitos outros profetas, avatares, gurus, filósofos, que convergem todos para o mesmo ponto, sendo o Cristo, possivelmente, o epítome [resumo da obra] ou o enfeixamento global de todos os outros que o precederam. A doutrina divina é uma só; a nossa meninice é que lhe tem emprestado rótulos causadores de dissensões.
Muitas pessoas malham o Cristianismo pelo fato de os cristãos, durante longa época, haverem-se distanciado da pureza de seus princípios, procurando impô-lo a espada e fogueira. Erros históricos cometidos por homens falíveis não podem comprometer a sublimidade de sua essência.
Sobre os legítimos condutores, observemos que o gênio geralmente é pessoa arredia, imersa no seu mundo, amiúde isolada no meio onde vive por não encontrar com quem confabular, sem embargo de cumprir sua missão na sociedade. Só entre semelhantes é possível a comunicação (Pietro Ubaldi A grande Síntese, pág. 25). Ilude-se quem pensa que tais pessoas, mergulhadas na sua distante solidão, cortaram as amarras com a comunidade. Elas, mesmo distanciadas, participam, pertencem e muito contribuem, máxime disseminando idéias.
Há algumas décadas, num restaurante vegetariano em São Paulo, apontaram-me o pensador Huberto Rohden. Estava ele fazendo o seu repasto num canto afastado, sozinho, certamente absorto nas suas elucubrações, quando se aproxima um popular procurando entabular conversa a que ele ia respondendo paciente, cortês e monossilabicamente, mas como a denotar visível desejo de permanecer só. Não sei como o inoportuno interlocutor não percebia.
A transformação interna requer o recolhimento da solidão. É necessário conviver com ela no processo de autodescobrimento e robustecimento. O Cristo buscou-a com freqüência, e muitos outros iluminados têm recorrido a esses salutares e introspectivos retiros Buda, João Batista, Paulo, Gandhi...
Em engano, incorrem também os jovens com relação aos de idade provecta, até ou sobretudo com pais e avós, que sabem calar com grande sabedoria. O homem excessivamente sociável costuma ser dispersivo e/ou perfunctório. Talvez as pessoas mais solidárias sejam as mais solitárias, até porque, encerradas em seus laboratórios mentais, possam funcionar como usinas geradoras e alimentadoras de processos transformadores em demanda da renovação, que a massa não desbrava por si só.
A vibração sonora da palavra alcança pouca distância, enquanto que a vibração imperceptível do pensamento, em ondas hertzianas, transpõe obstáculos, vence distâncias imensas e triunfa sobre a impenetrabilidade da matéria.
Assim enxergava Lao-Tsé a dicotomia [divisão em duas partes iguais geralmente contrárias e complementares] entre o sagrado e o profano:
Quem é iluminado por dentro, parece escuro aos olhos do mundo;
Quem progride interiormente, parece ser um retrógrado;
Quem é auto-realizado, parece um homem imprestável;
Quem segue a luz interna, parece uma negação para o mundo;
Quem se conserva puro, parece um bobo e simplório;
Quem é paciente e tolerante, parece um sujeito sem caráter;
Quem vive de acordo com o seu Eu espiritual, passa por um homem enigmático.
Decerto, não é fácil para esses missionários conviverem num meio aquém do seu. Jesus, certa vez, não se conteve: Ó, geração incrédula e perversa! Até quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei? (Mat. 17: 17. Mar. 9: 19. Luc. 9: 41). Desabafo semelhante já tivera o Senhor diante de Moisés e Aarão: Até quando sofrerei esta má congregação, que murmura contra mim? (Num. 14: 27).
As novidades trazidas pelos condutores para o crescimento da humanidade precisam ser disciplinadamente dosadas, a fim de surtir o efeito desejado. Assim como o texto bíblico teve de dizer que o Sol se deteve, porque o povo ainda não podia entender que é a Terra que gira, de outra feita o Senhor teve de dar mais uma informação inexata, considerando que o nível do povo não comportava a exatidão: Porque assim como desce a chuva e a neve dos céus, e para lá não torna... (Isa. 55: 10). Ele não poderia nunca dizer que a água caída das nuvens sob forma de chuva e neve a elas retornaria pela evaporação, sob pena de ser desacreditado e não aceito.
Mister se faz levar em conta as circunstâncias. Os homens de gênio têm que falar de acordo com as épocas em que vivem e, assim, um ensinamento que pareceu errôneo ou pueril, numa época adiantada, pode ter sido o que convinha no século em que foi divulgado (Questão nº 581 de O Livro dos Espíritos).
(Extraído do livro Reflexões sobre a Doutrina Crística, de autoria do articulista)
Walter Barreto de Alencar walrecar@yahoo.com.br