"É chegado o momento de pagar minha traição. Eu sei que estou condenado, não mereço salvação". É assim que começa o testamento de Judas. Entre o peixe da Sexta-Feira e o Ovo da Páscoa no domingo, a tradição reza que no sábado é dia de malhar o apóstolo que traiu Jesus depois da Santa Ceia. Na brincadeira, o testamento é lido antes da queima do boneco que simboliza o apóstolo traidor. No documento, vão as críticas aos políticos, a desafetos e, muitas vezes, aparecem as fofocas do bairro.
E se engana quem acha que a tradição está morrendo em Salvador. É o que afirma Ione Sales, viúva do mais famoso fogueteiro da cidade, Florentino Moreira Sales, o Florentino Fogueteiro. Após a morte do patriarca, em 2006, a família assumiu o negócio e mantém a tradição de confeccionar os bonecos de Judas para o Sábado de Aleluia. Para este ano, foram feitos 200 bonecos, que dona Ione espera vender até a manhã do dia da festa.
Os bonecos são feitos artesanalmente pelos netos, que assumiram a produção desde a aposentadoria de Florentino devido a problemas de saúde. Os bonecos são construídos com papel, tecido, madeira e recheados com explosivos e espadas. Apesar dos muitos pedidos para fazer o Judas personalizado, dona Ione não acata as solicitações. "Muita gente pede para fazer com cara de políticos, mas eu não quero confusão. Cada um pode botar a máscara que quiser, mas a gente vende só com a cara de boneco mesmo", esclarece.
A qualidade do trabalho atrai compradores até de fora da Bahia. É o caso do grupo que veio do interior de Pernambuco exclusivamente para comprar dois Judas aqui em Salvador. O promotor da festa no município de São João Pernambuco é o vereador João Quirino de Oliveira. Ele conta que vale a pena enfrentar quase mil quilômetros de estrada por causa da qualidade do produto. "Só o pessoal daqui faz o Judas com esse pé, que o faz girar antes de explodir", conta.
Quirino se refere à disposição de algumas espadas na base que, segundo dona Ione, é o segredo do sucesso do boneco. "Nós arrumamos de um jeito que faz o Judas rodar para um lado, depois para o outro, e então as bombas começam a explodir", explica.
Em Salvador, a tradição da queima de Judas permanece forte no bairro de Pernambués. Organizado há 34 anos pelo comerciante Nivaldo Pereira, o Sábado de Aleluia é o ponto alto das comemorações da Semana Santa no local. Pereira trouxe o hábito de seu estado natal, Sergipe. "Na época em que cheguei aqui, ninguém queimava o Judas pelas redondezas, agora já está mais comum de ver". Mesmo com a concorrência, ele garante que a festa que organiza é a mais animada. "Isso aqui vira uma grande festa de largo e não falta assunto para botar no testamento do Judas", garante.
Pereira segue a tradição à risca: "A festa pode até começar cedo, mas a queima é só à meia-noite". Para ele, o significado maior da festa é o aspecto religioso que há por trás do evento. "É uma forma de a gente lembrar o mal que foi a traição de Judas", diz. Mas para garantir a animação do povo, Pereira revela um ingrediente que não pode faltar na festa: "O forró aqui vai até de manhã", promete.