Material é extremamente rico. Além das cadernetas de campo, coleção inclui documentos biográficos
Natural de Santo Amaro, no recôncavo, Theodoro Sampaio (1855-1937) dá nome a uma das mais importantes avenidas da capital paulista. É uma justa homenagem, afinal um dos seus feitos foi a modernização e expansão do sistema de saneamento da cidade.
Brilhante em áreas como engenharia, história e geologia, em meio aos seus muitos afazares não descuidou da mãe e dos irmãos ainda escravos.
Em uma carta ao Visconde de Aramaré, pede o abatimento do valor da alforria do irmão, pois está recém-casado, mas disposto a chegar a um acordo.
"A minha promessa de libertar o Ezequiel tem de ser agora cumprida - apesar das dificuldades com que estou lutando momentaneamente em como me acho de arranjos de casa e família. Peço a V. Excia. que faça a esse seu escravo um grande benefício, minorando o preço de sua liberdade".
A carta tem a data de 13 de março de 1882. Visconde de Aramaré era o título de Manuel da Costa Pinto (1809-1889), proprietário do engenho Canabrava, onde Theodoro nasceu. Não se sabe ao certo se já liberto.
"Ainda não foi encontrado o registro de sua alforria e a Lei do Ventre Livre ainda não estava em vigor", explica Zita Magalhães Alves, diretora do Arquivo Theodoro Sampaio, onde estão documentos valiosos sob a guarda do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).
A carta é uma das muitas preciosidades da coleção formada por 14 dos seus diários. A coleção inclui cadernos usados em seu trabalho de campo, desenhos e também documentos sobre a vida familiar como a carta ao senhor do engenho onde nasceu.
O material foi salvo por pouco. A irmã de Theodoro quase os descarta após sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1937. O IGHB se apressou em recebê-los e conservá-los. A batalha agora é para publicá-los.
"Como depositário de 14 cadernetas de Theodoro Sampaio, com anotações desde o século XIX, o IGHB avalia como essenciais essas publicações para a memória da Bahia. Por isso tivemos a iniciativa de promover a digitalização, transcrição e atualização ortográfica das cadernetas", explica Eduardo Morais de Castro, presidente do instituto.
Segundo ele, a Universidade de São Paulo (USP) chegou a fazer contato para publicar o material, mas não se chegou a um consenso.
"Dessa forma, estamos em negociações com a Assembleia Legislativa da Bahia para publicar os manuscritos", completa.
Identidade
Além da possibilidade de conhecer de perto os caminhos que levaram Theodoro Sampaio a construir livros como O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina e O tupi na geografia nacional , é possível perceber como em uma sociedade escravocrata um homem negro que ascendeu e teve oportunidades raras para alguém de sua origem não a renegou.
Tanto que na carta endereçada ao americano Donald Pierson, autor de Brancos e Pretos na Bahia - um estudo de contacto racial, obra informativa sobre as tensões raciais na Salvador dos anos 30, ele fala da condição negra da mãe, sem nenhum rodeio.
"A minha mãe era preta, mulher de natural beleza na sua raça. Domingas era o seu nome". O nome do pai não é mencionado na carta: "Nasci de paes modestos. O meu progenitor era branco, homem culto de uma família de lavradores, senhores de engenho no Recôncavo baiano", revela o texto.
Para alguns de seus biógrafos é uma possibilidade de que fosse filho de alguém da família dos donos de engenho e não do padre de quem herdou o sobrenome e o apadrinhamento que lhe permitiu ir para o Rio de Janeiro estudar.
Theodoro poderia, portanto, se apegar à condição de "mulato", passaporte, na época, para se afastar da condição de descendente de africanos. Não quis e pagou seu preço. Na carta para Pierson, datada de 12 de outubro de 1936, conta um episódio de racismo explícito que o atingiu.
Nomeado para a Comissão Hidráulica, um estudo sobre portos e rios do interior brasileiro, coordenado pelo engenheiro americano William Milnor Roberts, teve o seu nome omitido do grupo em publicação do diário oficial .
A apuração revelou o racismo em uma das suas muitas faces: "É que eu era o único homem de cor na comitiva", conta Theodoro, frisando o espanto do oficial de gabinete do ministro: "Pareceu-lhe muito chocante, tanto mais quanto se tratava de pessoal a servir com techinos americanos, os quais ao que se dizia não apreciavam a companhia dos homens de cor".
Theodoro assumiu sua origem e não esqueceu a família presa à escravidão, como mostra a carta em que negocia a liberdade do irmão: "É despesa que faço com a maior boa vontade do meu coração e estou certo que a Providência Divina não nos desampararará".
Não desamparou, pois além do reconhecimento profissional, deixou uma memória digna de ser preservada.