Nicole: 'Vim para a pista por não ter nem o que comer'
SÉRIE 3/3
Travestis / Relatos de quem já foi ou é vítima de atitudes hostis
A atitude de colocar a primeira roupa de mulher, aos 12 anos, deu início a um processo de autoafirmação, mas também desencadeou uma série de agressões físicas e psicológicas por parte da família. Sobretudo da mãe, que não aceita o único filho como travesti e o colocou para fora de casa. Nicole tem 14 anos de idade e se prostitui desde os 12, quando foi expulsa da casa da família por assumir sua atração por homens.
"Aí meu avô passou a me agredir depois que soube que era travesti, que gostava de homem. Ele raspava minha cabeça, batia em minhas pernas com pau e me obrigava a jogar futebol", contou. "Ele dizia que ter uma pessoa como eu na família era uma vergonha", completou a adolescente.
Segundo ela, o avô mudou e passou até a defendê-la, após intervenção do Conselho Tutelar. E hoje é quem tenta convencer a mãe a aceitá-la dentro de casa. "Vim para a pista por 'precisão' porque, às vezes, não tinha nem o comer", disse. Ela se prostitui no Largo de Roma e, vez ou outra, vai para outros pontos, a exemplo da Barros Reis.
Na semana passada, a reportagem soube por outras travestis que Nicole estava afastada das ruas porque havia sido agredida pela cafetina que "cobra a rua" [taxa semanal para as travestis poderem trabalhar na rua] na Barros Reis, Dois Leões e Sete Portas.
"Ela queria que Nicole colocasse R$ 20 de crédito no celular dela. Eu tomei as dores e bati boca com a cafetina, mas ela sacou um estilete e cortou a perna de Nicole. Foi um corte grande e feio", contou uma travesti, sob anonimato.
Essa mesma cafetina ameaçou a reportagem na noite do dia 30 de outubro no trecho de acesso à ladeira do IAPI, na Barros Reis. "Se sair alguma coisa sobre mim no jornal, eu vou invadir a casa de vocês e matar todos os familiares", gritava a suposta cafetina, enquanto tomava uma dose de conhaque puro.
Assim como Nicole, a travesti Marta Sá já sentiu na pele o que é a violência familiar. Hoje, aos 60 anos, ela vive um drama gerado pela intolerância das ruas. "Foi o dia mais feliz da minha vida. Durou pouco...", lamentou a travesti Marta Sá, 60 anos, diante da casa em ruínas, onde morava e mantinha um pensionato.
O imóvel, localizado na esquina da rua da Poeira com o beco do Vintem, na Baixa do Sapateiro, foi incendiado na madrugada do dia 9 de setembro de 2013. O homem a quem ela negou o aluguel de um quarto é o suspeito de ter praticado o crime.

Após perder casa onde mantinha pensionato, Martinha sobrevive graças a amigos (Foto: Joá Souza l Ag. A TARDE)
"Tantos esforços que eu fiz, tanto trabalho que eu tive para juntar dinheiro para comprar esse imóvel e, por questão de homofobia, olhe como está", lembra. Martinha, como é conhecida, acredita que o crime foi motivado pelo fato de ela ser uma travesti pois o suspeito disse: "Se eu pudesse, vocês 'viados' morriam assim, todos queimados".
Desde então, ela vive e come de favor na casa de amigos e luta para conseguir reformar o imóvel e poder voltar a morar lá. Isso porque, Martinha sempre se preocupou em ter uma casa onde pudesse viver com segurança e um pouco de conforto na velhice.
Ela buscou ajuda para reformar a casa em vários órgãos públicos. Mas sem sucesso. O IPAC e o IPHAN informaram que o imóvel não é tombado e nem está em área de tombamento. "Eu queria que alguém fizesse uma campanha para me ajudar", apelou.
O imóvel Nº 9 da rua da Poeira representa o trabalho de uma vida inteira como prostituta em busca de segurança, inclusive em países da Europa. E é justamente a esperança de ver a casa reformada que lhe dar forças para continuar, apesar das dificuldades. "Eu já pensei até em me suicidar", disse emocionada. Ela revelou ainda sofrer de uma doença incurável.
Tiros de chumbo
Na Pituba, moradores de quatro prédios localizados na Avenida Manoel Dias da Silva, externaram o preconceito contra as travesti por meio de tiros de chumbo. De cima dos edifícios, jovens atiram nas travestis que ficam no trecho entre as ruas Pará e Maranhão.
Tanto Lohainy, 20, quanto Isabela, 21, afirmam já terem sido ferida na perna por esses tiros. "Fiquei assustada, quando vi o sangue escorrer. Incomoda e dói muito", afirmou Lohaine. Já Isabela, 21, conta que, certa vez, um dos tiros só não acertou o olho porque ela estava com óculos.
"É horrível. A bolinha fica presa na perna da gente. Eu trabalho no Itaú. Não posso ficar lá porque os tiros vêm no meu rosto. São dois 'playboyzinhos'. Fico da árvore para lá. Se a agente apontar na esquina, eles atiram. Isso é preconceito. É homofobia. Eles estão impedindo a gente de trabalhar, associando a prostituição ao que querem", conta Isabela.
As agressões com tiros de chumbo começaram em agosto e, como permaneceram, algumas travestis procuraram o Núcleo LGBT da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), coordenado pela também travesti Paulete Furação.
Segundo ela, houve uma reunião com três travestis vítimas dessa violência, representantes dos condomínios e o coronel Ramalho Neto, da Superintendência de Prevenção à Violência, da Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA). "Solucionamos essa questão por meio de conciliação. Acionamos os síndicos, que acionaram os moradores", informou Paulete Furacão.
Como se não bastasse, as travestis ainda são alvo de homens que param os carros como se estivessem interessados em fazer um programa, mas as agridem com extintor de incêndio quando elas se aproximam. Na noite do dia 2 de outubro, um homem em um carro branco as agredia dessa forma nas ruas da Pituba.

Isabela: tiros de chumbo começaram em agosto (Foto: Joá Souza l Ag. A TARDE)