Drama consegue deixar personagem e espectador soltos no terreno da imaginação
Um filme que é exceção do início ao fim. Começa como uma espécie de ensaio experimental sobre a solidão de uma cega, é tomado por uma aura de inquietação em torno da perspectiva que a personagem assume diante da vida e termina como um exercício de estimulo sensorial sobre a dúvida.
Quem realmente não enxerga (ou não vê?): a mulher ou o espectador que a essas alturas viveu uma experiência em torno do que de fato é real ou inventado. Pode ser uma, outra, ou as duas coisas.
Blind, do norueguês Eskil Vogt, foi premiado nos festivais de Sundance e Berlim. Trabalha de forma tão radical as infinitas possibilidade em torno do que existe e acontece - e isso é um mérito da montagem de Jens Christian Fodstad - que não seria o que é se não houvesse também, ao lado do diretor e roteirista, a fotografia de Jakob Ihre.
Poema translúcido
Praticamente um personagem que se junta à pele branca de Ingrid, a mulher cega interpretada por Ellen Dorrit Petersen, a iluminação de Blind faz do filme um poema translúcido de evocação dos sentidos e da memória. É como se optássemos também por não ver e por se deixar levar pelas variantes que o filme apresenta.
Ingrid está sozinha em casa, e pode contar com um aparato tecnológico que a livra de muitos problemas comuns a uma pessoa que não enxerga. Da voz que informa se a porta do microondas ou da geladeira está fechada e até a cor da roupa com a qual deseja sair, ao lap top exclusivo nos quais joga suas impressões.
Cega em consequência de uma doença que jamais é revelada, ela vive em desalinho com o mundo ao redor, com a sensação de que o marido (Morten - Henrik Rafaelson) chega em silêncio para observá-la, e envolvida em questões sobre a possibilidade de engravidar e como seria ter um filho e poder criá-lo.
Hitchcock
É inacreditável o que Vogt faz com o roteiro do longa-metragem, ao introduzir mais dois personagens, que parecem amigos e vizinhos do prédio de Ingrid e ao mesmo tempo uma projeção de sua mente. Já está em cena, desde o início, a figura de Elin (Vera Vitali) e Einar (Marius Kolbenstvedt) que embaralham a cena e carregam o filme de sensualidade e mistério.
Poderíamos entrar aí em um terreno hitchcockiano por excelência, de evocação a filmes como Suspeita (1941) ou Janela Indiscreta (1954) pelo que Blind assombra ao se colocar diante da dúvida. Ou ainda do humor escrachado de Philippe de Broca em O Magnífico (1973), em que se pode separar o fantástico, o absurdo.
Mas o que existe, aqui, é a impossibilidade de ver, de enxergar. Entramos, todos, como Ingrid, nesse lugar pantanoso. O que importa é a imagem viva solta no terreno da imaginação.