Documentário do cineasta discute o pensamento de Glauber rocha e política brasileira no Cine Ceará
O Cine Ceará revelou sua faceta mais politizada com a exibição de Cordilheiras do Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro, documentário do cineasta e jornalista Geneton Moraes Neto, tendo Glauber Rocha como epicentro. O filme toca em assunto polêmico: o apoio de Glauber ao general Ernesto Geisel após voltar de exílio na Europa. Além de nome fundamental do movimento Cinema Novo, Glauber era também um intelectual que pensava profundamente a realidade do Brasil. Com sua personalidade forte e atuante, discurso incansável e prolífico, não tinha receio de expor suas opiniões publicamente. Mas acabou sofrendo um duro patrulhamento ideológico por conta dessa sua posição. Em 1981, Geneton vivia em Paris e conheceu Glauber durante uma exibição de A Idade da Terra (1980), seu último filme. Voltou para o Brasil e entrevistou algumas personalidades, mas acabou guardando os arquivos. Agora, mais de 30 anos depois, resolveu fazer um filme e coletar várias entrevistas para discutir a política brasileira a partir das posições polêmicas de Glauber. Confira abaixo entrevista exclusiva para o A TARDE com o cineasta Geneton Moraes Neto.
O que lhe motivou a retomar esse material guardado há tanto tempo?
Nesse tempo todo eu me dediquei muito ao jornalismo, mas recentemente dei uma pausa no trabalho e resolvi retomar esse projeto do Glauber depois que recuperei as gravações antigas feitas naquela época. E, como jornalista, tive essa gana por reunir material inédito. Todas que estão no filme fui eu que colhi, são 26 vozes, as mais diversas. Mas é um filme sobre Glauber Rocha que não trata de cinema, trata de política, de Brasil.
O filme também utiliza atores e pessoas próximas a Glauber que recitam frases, textos e discursos inflamados dele. Por que essa escolha?
Um filme sobre o Brasil, especificamente através da visão de Glauber Rocha, não podia ser um filme sussurrado, tinha que ser um filme incendiário, operístico. O tom é exaltado, o que não foi casual. A gente não pode falar de Brasil, dos delírios de Glauber, num tom de Bossa Nova. O assunto Brasil pede esse tom. É preciso recuperar essa visão épica, não pode ser uma coisa pequena, medíocre, imediata. Por isso, os atores fazem uma mistura de performance e discurso inflamado. Era preciso correr esse risco.
Isso tudo também tem a ver com o momento político polarizado atual?
Eu diria que, infelizmente, o filme ganhou uma atualidade inesperada. Porque é um exemplo radical de intolerância política e de patrulhagem ideológica que foi exercida contra Glauber por ele ter apostado num aceno de uma ala dos militares como saída para o Brasil. E surpreendentemente, em tempos democráticos, estamos vivendo uma época de intolerância política, só que dessa vez entre os próprios brasileiros. Glauber apontava para outra direção e realça essa necessidade de ver o Brasil com outros olhos e de se chocar com a intolerância política, trazendo essa lição para os dias de hoje. Há uma discussão entre PT x PSDB e se esquece que o Brasil é muito maior que isso, é um país complexo, fascinante, contraditório, que exige uma visão à altura.
Você acha que o filme de certa forma redime a figura de Glauber?
Eu não tenho a menor dúvida que, naquele momento, o Glauber estava certo. O Brasil vivia um momento de impasse, no fim do governo Médici, e a luta armada tinha fracassado, se tornado uma aventura suicida. Então, havia duas saídas: ou continuar todo mundo se matando ou tentar outra escolha. Mas a palavra de ordem ainda era contra os militares. Então, quando Glauber aparece com essa proposta de apoiar o Geisel, ele se joga às feras e acaba sendo crucificado. Mas como todo visionário, hoje é bem razoável dizer que ele estava certo.
E como foi o encontro com Glauber em Paris?
Nessa época, ele já estava no auge da crise política e também muito mal de saúde. Eu e um amigo, Marcos de Sousa Mendes, estudávamos cinema lá em Paris e Glauber estava passando A Idade da Terra para os críticos franceses. A gente teve contato com ele antes e ele disse que a gente podia aparecer na exibição. E, no meio de todos, ele nos citou, disse que havia uma juventude brasileira ali presente interessada em cinema. Foi emocionante porque o tínhamos como ídolo e de repente ele nos dá uma injeção de ânimo daquela. Eu me sinto até aliviado de fazer esse filme, é como uma dívida pessoal que eu tinha com ele.