Jia Zhang-ke ao lado do diretor Walter Salles
A estreia de Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang, documentário de Walter Salles que acompanha a trajetória do cineasta chinês apontado como um dos melhores realizadores em atividade no mundo, surge como uma espécie de cartão de visitas. Zhang-ke nasceu em maio de 1970 em Fenyang, na província de Shanxi. Aos 45, já dirigiu filmes notáveis como Plataforma (2000), Em Busca da Vida (2006) e Um Toque de Pecado (2013).
As consequências da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung pesaram tanto a ponto de fazê-lo dono de uma escritura própria que o consagrou por registrar com rara beleza as transformações por que passa seu país, desde então, e os efeitos da globalização que se seguiu à China do líder comunista. Robert Bresson (1901-1999) e Michelangelo Antonioni (1912-2007) são algumas das assumidas influências.
Não é à toa que o primeiro longa de Zhang-ke, Um Artista Batedor de Carteira (1997), com o qual ficou conhecido no Festival de Berlim de 1998, cita diretamente o clássico de 1959 do diretor francês, Pickpocket. E em Memórias de Xangai (2010) ele abre o diálogo com o monumental Chung Kuo - Cina, documentário proibido que o italiano filmou no início dos anos 1970, a convite do governo chinês, no período mais intenso da Revolução Cultural.
Trilogia
Um Batedor de Carteira enfoca a vida de um ladrão confrontado com a solidão pelas ruas da cidade em consequência de sua ação criminosa.
O filme dá inicio à chamada trilogia de Fenyang, formada ainda por Plataforma, que acompanha jovens artistas que começam a respirar sob os novos ventos que sopram na China dos anos 1980, e Prazeres Desconhecidos (2002), em que expõe fendas sociais por meio da história de dois jovens desempregados que resolvem fazer um assalto.
Foi com Batedor que Walter Salles conheceu Zhang-ke, no ano em que ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim com Central do Brasil. Desde então, como fez com a geração anterior, com os filmes de Zhang Yimou e Chen Kaige, que ajudou a divulgar no Brasil, Salles tem sido um entusiasta do cinema de Zhang-ke. A ideia de fazer um documentário nasceu em 2007, na retrospectiva do cineasta chinês que aconteceu na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Salles acompanha Zhang-ke em Um Homem de Fenyang, um ritual memorialista em que o cineasta chinês, conduzido por um dos seus mais fiéis admiradores, aciona a memória e vai literalmente ao encontro do passado.
Ele revê amigos, parceiros, velhos que o viram criança, a mãe, a irmã, resgata histórias que deram forma a sequências admiráveis em seus filmes. Uma delas é a da motocicleta, pilotada por um jovem, que emperra na subida de uma encosta de pedras. Não estava previsto. Mas Zhang-ke, como o Fellini do pavão de Amarcord, deixa rolar.
O cineasta se emociona. Ele quase vai às lágrimas ao lembrar do pai. Lembra da proibição de seus primeiros filmes na China com um misto de melancolia e satisfação por ver Plataforma tão procurado em cópias pirata. Mostra-se profundamente decepcionado: "A questão não é mais que projeto, mas se continuo a filmar ou não", afirma, dizendo que está sendo impedido. É bom lembrar que Um Toque de Pecado também sofreu restrições em seu país. Zhang-ke diz que o que pode fazer é registrar tudo nos filmes, se não há como impedir a transformação.
Veia documental
Diretor de filmes consagrados como Abril Despedaçado (2001), Diários de Motocicleta (2004) e Linha de Passe (2008), muita gente já tinha esquecido da veia de documentarista de Walter Salles.
Mas logo vêm à mente títulos como Japão, Uma Viagem no Tempo: Kurosawa, Pintor de Imagens (1986), Franz Krajcberg: O Poeta dos Vestígios (1987) e sobretudo Socorro Nobre (1995), em que resgata a correspondência da então presidiária com o artista plástico polonês naturalizado brasileiro e radicado no sul da Bahia.
Socorro Nobre foi o pontapé inicial de Central do Brasil, o maior sucesso de Walter Salles, que tem sua ação deflagrada com a presença de Dora (Fernanda Montenegro) escrevendo cartas para parentes, amigos ou desafetos de gente com pouca instrução que passa pela estação de trem mais famosa do país. Socorro interpreta uma daquelas pessoas. Realidade se encontra na ficção - uma relação tão cara à obra de Jia Zhang-ke, feita de deserdados, que também cruzam o filme de Walter Salles, aqui entregue ao documentário sem vícios nem vaidade.