Os atores James Thierrée e Olmar Sy no filme
O maior trunfo de Chocolate, filme estrelado pelo carismático Omar Sy e que chega como grande destaque do Festival Varilux de Cinema Francês 2016, é a possibilidade do resgate e registro para a posteridade da história do palhaço Rafael Padilla, o primeiro artista de circo negro a atuar nos picadeiros de Paris no início do século 20, cuja incrível trajetória de vida era desconhecida para boa parte do público.
Para o diretor Roschdy Zem, que esteve no Brasil e conversou com A TARDE sobre o projeto, "há uma dificuldade em apresentar um personagem que tinha sido esquecido, e nesse processo, existe uma espécie de excitação em conseguir resgatar um artista, quase como cumprir uma missão", explica. Além disso, trata-se de uma obra cuja discussão se torna ainda mais relevante diante do momento vivido pela Europa e a crise migratória atualmente em curso, com pessoas que, do mesmo modo que o personagem título, deixaram países em situações adversas.
Para o cineasta, ele mesmo oriundo de uma humilde família de imigrantes marroquinos, ao escrever um roteiro como o de Chocolate, há uma sensação de que a realidade te alcança neste ponto em que se aborda a questão de pessoas em situação irregular na França. "Parece que a realidade tem muito mais imaginação que os próprios autores", afirma o diretor. "É interessante traçar esse paralelo com uma pessoa como Chocolate no começo do século passado e a situação de um imigrante que se encontra ilegal hoje", complementa.
Palhaço melancólico
Apresentando o personagem desde sua origem ainda no pequeno circo do interior da França, onde atuava não como palhaço, mas como o selvagem canibal Kananga, Zem opta por uma narrativa linear e convencional, mas não menos eficiente, ao contar sua ascensão, deslumbre com a fama, alcoolismo, vicio no jogo e consequente declínio do homem que passou a se dedicar ao riso sob o nome de Mounsier Chocolat.
Existe uma sintonia notável na presença de Chocolat e na de Footit (James Thierrée), seu parceiro nos números, o que explica em parte o sucesso de suas apresentações. Nos gestos desastrados da dupla em cena, com toda a pantomima e, representando bem o racismo da pretensa alta classe francesa do período, toda dominação do palhaço branco em relação ao negro (o que, com o tempo, acaba por representar o declínio daquela sintonia), o público da época se vê cativado pela graça das confusões dos dois.
Ao escalar Omar Sy para o papel do protagonista, o filme acerta na mosca. Demonstrando um domínio corpóreo no sentido de se criar, Sy prima por trazer dinamismo para seu papel. Além disso, o sorriso aberto serve de contraste à natureza ironicamente introvertida de Footit, que tem na atuação de Thierrée uma face melancólica que equilibra bem a relação dos dois personagens.
Para o cineasta Roschdy Zem, a escolha de Sy foi um desafio. "Em todo ator cômico, há sempre um lado mais sombrio que me interessa, e Omar não é uma exceção a essa regra", afirma. "É verdade que ele está sempre irradiando um sorriso, mas, acima disso, ele também está sempre se questionando, sempre tirando suas dúvidas, o que o mostra, também, como alguém vulnerável e frágil", salienta o cineasta.
Dois protagonistas
Thierrée, inclusive, apesar de coadjuvante, tem em seu personagem um peso dramático a salientar de modo tocante toda a tristeza que esconde em suas performances. Para o diretor, ele não é um coadjuvante, mas, sim, um segundo protagonista. "James, inclusive, foi quem criou os números de comédia que vemos ele e Chocolate encenarem", revela.
Trata-se de um filme a fim de revelar e desconstruir um mito cujo símbolo principal é o sorriso. Diante do seu deslumbre e de toda adversidade que o sucesso, dinheiro e fama lhe trouxeram, bem como confrontado pelo racismo e xenofobia que a sociedade da época lhe impôs, Rafael Padilla cede e deixa de fazer sorrir.
Consegue, no entanto, quase como seu último número, a proeza de trazer ao velho amigo Footit a gargalhada que ele parecia nunca ceder.
O jornalista viajou a convite do Festival Varilux