Era uma Vez Brasília, ficção científica politizada, é um dos filmes da mostra competitiva
Joana Pimenta l Divulgação
Há pouco mais de 50 anos, o grande crítico, pesquisador e pensador do cinema brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes criou a Semana do Cinema Brasileiro. Alguns anos depois, o evento tornou-se o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, vindo a se consolidar como um dos mais importantes festivais a colocar em perspectiva o cinema nacional, ajudando a alavancar a carreira de muitos profissionais do cinema.
Nesta sexta-feira, 15, começam os trabalhos da histórica edição de número 50. Na abertura será exibido o inédito Não Devore Meu Coração, longa de Felipe Bragança, que competiu no início do ano no prestigioso Festival de Sundance, além de selecionado para o Festival de Berlim. Haverá também homenagem para o veterano cineasta e precursor do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos.
Uma diversidade de filmes concorre ao prêmio máximo do festival, o Troféu Candango. Obras aguardados de cineastas proeminentes tais como Adirley Queirós, que traz a inusitada ficção científica politizada Era uma Vez Brasília; o polêmico Por Trás da Linha de Escudos, de Marcelo Pedroso - filme exibido recentemente no CachoeiraDoc; ou Vazante, de Daniela Thomas - seu primeiro longa solo, depois de filmar com Walter Salles e Felipe Hirsch.
Filmes de cineastas jovens também fazem estreia nacional, como Pendular, de Julia Murat - premiado no Festival de Berlim; ou O Nó do Diabo, dos diretores Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi.
"Além dos que nos chamaram mais a atenção, tentamos imaginar que tipo de filme faz sentido para o Festival de Brasília", afirmou o atual diretor artístico do evento, Eduardo Valente, sobre o processo de escolha da seleção.
"Existe uma circunstância sociopolítica em que se espera que os filmes tenham algo a dizer, de maneiras bem diferentes, refletindo de alguma forma nosso tempo. E, em um sentido mais amplo, buscamos filmes que tenham também certa pesquisa de linguagem", ponderou Valente.
Cinema do Recôncavo
Um longa baiano marca presença na competição: Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, fruto do trabalho dos diretores radicados no Recôncavo baiano, sendo o longa de estreia da dupla. "É uma felicidade estar no festival, junto com cineastas que a gente admira tanto", afirmou Ary.
Segundo os diretores, Café com Canela é uma história de cotidiano, traçada a partir do reencontro entre duas mulheres. O filme pretende mostrar a cara do Recôncavo baiano, explorando as regiões de Cachoeira, São Félix e Muritiba. "É um ponto muito chave e caro pra gente o respeito e o entendimento desse lugar. E o Festival Brasília é uma janela linda para mostrar isso", arremata o diretor.
Dentre os curtas em competição, destaque para a produção baiana Mamata, de Marcus Curvelo, que compete no festival, depois de ter realizado o mesmo feito ano passado com o curta Ótimo Amarelo. E tem ainda As Melhores Noites de Veroni, filme do alagoano Ulisses Arthur, que é aluno do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo, em Cachoeira.
Filme outonal
Outro longa baiano muito esperado no festival é Abaixo a Gravidade, do mestre Edgard Navarro. Em 2005, ele já havia saído consagrado de Brasília com sete Candangos, incluindo o de melhor filme, pelo seu tardio longa de estreia Eu Me Lembro. Agora, ele retorna com o que define como sendo "um filme outonal".
Navarro já foi visto como um enfant terrible do cinema baiano, especialmente na fase experimental superoitista, na década de 1970, de onde saiu filmes como O Rei do Cagaço (1977), e que posteriormente gerou um clássico absoluto que é SuperOutro (1989). O cineasta busca agora outro tom narrativo com seu novo trabalho.
"Trata-se de um filme da maturidade, quando as correntes impacientes e revoltas das cascatas já procuram a calma do remanso antes de se fundir no mar", poetiza o cineasta. Na trama divulgada, Bené (Everaldo Pontes) é um homem do campo que se apaixona por uma jovem (Rita Carelli) e se vê tentado a retornar à cidade grande.
"Abaixo a gravidade" era uma frase icônica do personagem de SuperOutro, o que poderia aproximar os dois filme. Mas Navarro pondera: "agora, a loucura não está na personagem central, mas na realidade que o circunda e o empurra para o lugar da escolha entre a extrema compaixão e o transe". O filme será exibido no encerramento do festival no domingo, 24.
50 anos em 5 dias
Tomando emprestado o famoso slogan do projeto político de Juscelino Kubitscheck, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) foi convidada para fazer a curadoria de uma mostra longas e curtas que marcaram as 50 edições do Festival de Brasília.
São muitos os destaques, como o longa A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, filme vencedor da 1ª Semana do Cinema Brasileiro, em 1965; ou então os icônicos A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, Blá Blá Blá, de Andrea Tonacci, A Falecida, de Leon Hirszman, e Alma Corsária, de Carlos Reichenbach.
Curtas mais recentes também fazem parte desse apanhado de filmes, como é o caso do representante baiano Ser Tão Cinzento, de Henrique Dantas, que recria os passos da perseguição sofrida pelo cineasta baiano Olney São Paulo na época do governo militar.
Sessões especiais
O Festival de Brasília deste ano apresenta uma seleção diversa. Foram criadas mostras especiais e duas delas ganham destaque: o de curtas universitários e a Futuro Brasil.
Esta última selecionou filmes de cineastas proeminentes que estejam realizando filmes em fase de finalização. Serão exibidos como "work in progress" em sessão fechada para convidados e programadores de festivais internacionais.
"Estes são espaços que potencializam os filmes antes mesmo deles estarem prontos", afirmou a dupla de diretores baianos Marília Hughes e Cláudio Marques que irão exibir Guerra de Algodão na mostra, seu mais novo projeto.
Já os FestUniBrasília abre espaço para que curtas feitos em âmbito acadêmico, por estudantes de cinema, ganhem visibilidade. Dos 20 filmes escolhidos, cinco são baianos.
Marise Urbano, diretora de um dos curtas, Com os Pés no Chão, comemora. "Dentro da UFBA aprendemos a pensar audiovisual e formar coletivos para estudar e produzir audiovisual. E o nosso filme surge da união de insatisfação, impotência e revolta. Um golpe aconteceu no país. O que fizemos?".
Em outra mostra intitulada Esses Corpos Indóceis passa ainda o longa baiano Diários de Classe, de Maria Carolina da Silva e Igor Souza. O filme toca em importante questão social ao abordar a vida de jovens e adultos que voltaram à escola para aprender a ler e escrever.
"O festival tem a obrigação de ser um reflexo do que é o cinema brasileiro hoje", define Eduardo Valente. A 50ª edição do Festival de Brasília apresenta, portanto, uma programação robusta que promete ser histórica e potente.