Djin Sganzerla em “A Moça do Calendário”
Os baianos Edgard Navarro e Helena Ignez têm trajetórias bastante distintas no cinema. Ela começou como atriz de Glauber Rocha, mas encontrou na parceria com Rogério Sganzerla o caminho para a construção de um cinema dito “marginal” ou de invenção. E foi esse cinema que tanto influenciou Navarro e sua veia iconoclasta, fazendo-o traçar o caminho da contestação via diatribes de seus personagens.
Agora, na Mostra SP, os dois apresentam seus filmes mais recentes, também distintos entre si. No entanto, eles compartilham de uma mesma vontade de olhar para o mundo ao redor com liberdade, irreverência e sagacidade que a experiência lhes conferiu, fazendo de suas obras narrativas sem par no contexto do cinema nacional contemporâneo.
Helena Ignez vem se consolidando cada vez mais como diretora de cinema, desde que dirigiu seu primeiro longa-metragem em 2007, “A Canção de Baal”. É mesmo único o que ela tem feito atualmente nessa seara por conta da capacidade de trazer toda a influência do cinema marginal para o Brasil de hoje – que não mudou tanto assim. Ignez atualiza o “modus operandi” que desenvolveu junto com Rogério décadas atrás, e “A Moça do Calendário” é um claro amadurecimento dessa veia autoral.
Ora, o filme resgata roteiro inacabado de Rogério, adaptado para os dias atuais – ou melhor, para a Helena que ela é hoje. Na trama, Inácio (André Guerreiro Lopes) vive um mecânico desiludido com a vida de operário explorado. Sonha com a mulher exuberante que se exibe para ele do calendário colado na parede da oficina.
O filme dá vazão, literalmente, aos devaneios desse proletário que vê a moça-mulher se materializar em sonho e frescor (vivida por Djin Sganzerla). Mas agora ela não mais assume a posição de objeto do desejo, antes afirma suas posições e opiniões, cobrando as dele. O filme se abre também para uma série de outras questões que estão na agenda contemporânea: de repente, a trama de Inácio é interrompida para mostrar a reunião de um grupo que comemora o dia da Consciência Negra.
Estão lá discussões, ainda que rápidas, sobre o universo trabalhista, as lutas pela reforma agrária, a emancipação feminina. E mesmo que algumas dessas questões surjam de modo expositivo, elas guardam o frescor da imprevisibilidade das cenas e das situações que tomam de assalto o filme.
Helena consegue ainda ser autorreferente sem nunca soar pedante. A figura da moça idealizada de Djin, com seu vestido vermelho provocante, é claramente inspirada em Sônia Silk, personagem icônica interpretada por Ignez em “Copacabana Mon Amour”, de Sganzerla. Guerreiro aparece, numa cena rápida, imitando Zé Bonitinho, personagem do comediante Jorge Loredo, que se cristalizou em “Sem Essa, Aranha”, também do diretor.
São muitas piscadelas que o filme faz a outras obras idealizadas por Sganzerla e Ignez. “A Moça do Calendário” é como mais um tijolo acrescido a esse painel de irreverência e liberdade narrativa que quer ser também o retrato de um Brasil caótico que o cinema tenta exorcizar – ou organizar, vide a cena de abertura do filme em que Inácio faz o gesto de reger uma sinfonia de carros de uma avenida da capital paulista. Mesmo que a tarefa seja hercúlea, a intenção é rearranjar o caos do mundo, via cinema.

"Abaixo a Gravidade", de Edgard Navarro, é um dos destaques (Foto: Divulgação)
Desafiando as leis do universo
Há também muitos signos e elementos amalgamados no filme de Edgard Navarro, "Abaixo a Gravidade". A maioria deles faz parte de um imaginário que se criou e se alimentou através da obra pregressa do diretor, esse provocador incansável, com filmes dos mais experimentais aos de maturidade transcendental.
Outros, como esse novo, são reflexo de uma nova fase que o cineasta vive, mais serena, como ele mesmo define. Porém, certa placidez que se encontra aqui não é nunca domesticada no seu propósito de entender e se colocar no mundo: Abaixo a Gravidade é, também, um filme sobre crises atuais do homem moderno cosmopolita.
Filho tardio do cinema marginal que transou outras ondas, em outros tempos, Navarro encontra agora em Bené (Everaldo Pontes) um modo de olhar para os arroubos da paixão que ainda são capazes de tomar de assalto um pacato senhor e transtorná-lo, como nos deixa transtornados o mundo caótico representado na tela.
Bené é um senhor que vive recluso no interior, mais especificamente no Vale do Capão, fruindo uma vida zen-budista e de bem com o entorno natural. Encanta-se pela jovem Letícia (Rita Carelli), que lhe aparece um dia em busca dos alimentos naturais que Bené cultiva e vende; logo ele se vê tentado a seguir os passos dela que levam à capital baiana. Lá esbarra em uma série de personagens e em suas próprias crises pessoais.
O cinema de Navarro sempre esteve muito associado à irreverência e à anarquia, e é muito curioso perceber que seu novo filme aponta para certa placidez, na busca por uma transcendência da quietude e da paz de espírito em meio à desordem. É a brecha para que o filme aproveite também de não se eximir do delírio de retratar uma Salvador cheia de contradições que se refletem nas neuras e crises dos personagens.
Abaixo a Gravidade possui a tônica do delírio e do despautério – inclusive cinematográfico, ao abusar dos efeitos especiais e da piração metafísica, tão incomuns em um filme como esse –, moldada nesse novo modo sereno de olhar o mundo, mas sem deixar de lado o caráter desestabilizador que faz parte da gramática navarriana.
* O jornalista viajou a convite da organização da Mostra.