Navarro comemora 70 anos de idade e 30 anos do lançamento de ‘SuperOutro’ (1989)
Acontece até o dia 10 de junho a 14ª edição da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, que nesta edição tem como tema “Territórios regionais, inquietações históricas” e uma homenagem ao cineasta baiano Edgard Navarro. Na abertura da 14ª CineOP, que aconteceu nesta quinta-feira, 6, foi entregue a Navarro o Troféu Vila Rica.
O cineasta baiano comemora no evento 70 anos de idade e 30 anos do lançamento de seu trabalho mais conhecido, ‘SuperOutro’ (1989). O média-metragem, que em 2015 foi eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como o 44º melhor filme brasileiro de todos os tempos, foi mais uma vez, em maio deste ano, eleito o 7º melhor curta-metragem nacional, também pela Abraccine.
“Fico feliz de poder estar contribuindo para o cinema brasileiro, sendo visto ainda hoje. Filmes feitos há 40 anos ainda vivos e reverberando”, diz Navarro sobre a homenagem. “Isso é um atestado muito grande de reconhecimento. Fico honrado, feliz e muito grato”, acrescenta.
Em conversa com o Portal A TARDE, o homenageado da 14ª Mostra de Cinema de Ouro Preto – CineOP comenta sobre sua vida e carreira.
Como você avalia sua carreira nesses últimos 42 anos?
Eu comecei em 1976, aos 26 anos. Teve um momento inicial de arroubo muito forte, de explodir naquela criatividade que a gente tem quando a juventude está pulsando na veia. Acho que aquilo vai, ao passar do tempo, burilando, se transformando numa coisa diferente. Hoje, a contribuição significativa de alguns filmes se deve a esse arroubo da juventude. Sinto que, embora eu reconheça o valor dos trabalhos mais recentes, eles também só foram reconhecidos por uma parcela menor da população da plateia que esses filmes tiveram.
O que mudou na sua forma de fazer cinema?
Comecei a fazer cinema em plena ditadura militar, e o que eu vejo, infelizmente, é que 50 anos depois [da ditadura] a gente tem a mesma sensação da época. 50 anos depois, a gente está vivendo um momento no país de retrocesso muito grande. Pior, porque agora está com a chancela do voto popular. Muita gente votou nessa mentalidade. Sinto que fui expulso do lugar onde eu podia me sentir melhor. Eu não sou bem-vindo. Então, meus filmes não vão emplacar. Daqui por diante, não vou poder continuar fazendo coisa alguma.
Você fala como se não pudesse fazer filmes agora, mas você fez ‘Alice no país das Mil Novilhas’ (1976) durante a ditadura militar.
Verdade. Quando eu fiz “Alice”, eu tinha 26 anos, agora eu vou fazer 70. A diferença é essa. Eu acho que o gás vai chegando ao fim. Ele pode até depurar, a qualidade pode até ser boa, mas eu acho que a gente não tem o mesmo calibre de testosterona que tinha. Quando você vê que, 50 anos depois a coisa retrocede, dá um sentimento de angústia muito grande. Boto minhas fichas no futuro, claro. A rapaziada está com todo o gás e acho que é o momento de passar o bastão.
Pensando dessa forma, existe um cinema diferente do ‘Alice’ para o ‘Abaixo a Gravidade’?
Eu diria que em muitos anos de trabalho consegui amadurecer num sentido da depuração da linguagem e de tantas coisas que vivi, uma vida inteira de fôlego, de força e luta. Hoje, acho que o cinema que faço decantou e tem esse plus, ao mesmo tempo que perdeu um certo frescor que tinha lá no Alice e nos primeiros filmes.
Ainda na questão da ditadura, seu filme ‘Porta de Fogo’ foi censurado...
Foi. Sofreu uma censura frontal. Foi proibido de ser exibido, já no final da ditadura militar. Levou um ano sem ser exibido até que veio aquela república que chamaram de nova.
E como você se sentiu no momento da censura?
Levei muito tempo para fazer esse filme. Era minha juventude, minha profissão, meu desejo e também uma ressonância da sociedade. Foi um sentimento de inadequação no mundo, uma indignação muito forte. Uma coisa que eu sempre tive. Às vezes tenho esse pecado de achar que a culpa está comigo.
Pecado? Como assim?
É uma maluquice minha. Sinto que é como se tudo que aprendi de melhor, em termos de virtude, é um pecado. A sociedade é bruta. Você sendo delicado ou buscando a delicadeza, a sensibilidade e a poesia, você está fadado a ser considerado um fraco. E os fracos serão pisados e vão apanhar. Eu sempre tive o sentimento de que estava errado por ser fraco e tinha que me tornar um forte.
Quando você fala sobre esse sentimento de fraqueza, sinto que às vezes você coloca isso nos seus personagens. O próprio SuperOutro, onde tudo muda quando ele tenta se suicidar. Você pensa dessa forma na hora de construir seus personagens?
É isso mesmo, você tem razão. Está indo na direção certa quando interpreta dessa forma. Quando ele [SuperOutro] fala diante do Cruzeiro de São Francisco “Valei-me, meu São Francisco! Eu tô ficando com a cabeça podre”, aquilo é um atestado. Eu sinto isso também. Você pegou bem. É esse sentimento que resume a pergunta “O que é que há de errado comigo?”. Eu é que estou errado, eu é que estou doente, estou com a cabeça podre. É por aí.
Esses personagens. Você acha que tem você neles?
Muita coisa. SuperOutro, então, para mim, é uma encarnação daquilo que eu seria se fosse totalmente louco. Sou um pouco louco, não tanto.
Como seria um pouco louco?
Eu fiz muitas coisas que são coisas de um arroubo de loucura.
Pode dar um exemplo?
Essa coisa de tirar a roupa em público. Foi uma coisa que ficou muito forte na minha vida. As pessoas me cobraram aquilo o tempo todo e parecia que tinha uma coisa quase suicida. Era uma espécie de suicídio cultural, porque é agressão total. Sempre sou cobrado por isso. Atitudes desse tipo, que são além daquele comportamento aceitável. Mas, por outro lado, acho que isso é um diferencial importante também.
Você falou uma vez da vontade de querer pendurar a chuteira. Ainda cogita essa ideia?
Não sei, mano. Por enquanto não tive vontade de fazer nada, eu estou realmente com a sensação de que é melhor parar. Pelo menos para fazer um cinema que almeja um tratamento de indústria, como se fosse mercado, uma indústria que tem que vender. Eu não sei vender, eu não sou capaz de vender. Meus filmes não conseguem sucesso de bilheteria, não conseguem se manter e eu acho isso vergonhoso em certo sentido. Eu sinto vergonha de ir para a feira e não vender minha porra, entendeu? Vai uns caras que fazem umas comédias com atores da Globo e rendem milhões. Me pergunto onde não acerto? Eu não vou buscar acertar e fazer uma coisa fácil para poder ser consumido.
De onde vem esse problema? Qual o problema de um filme como o seu não chegar em grandes redes de cinema?
Olha, a gente tem vários problemas. Problema de educação em cultura do povo brasileiro, que tem um certo primitivismo muito gritante. A coisa que vem da geração formada pela ditadura militar e agora volta a mesma coisa. “Livro não é bom”. Essa coisa de dizer que Chico Buarque, Drummond são todos comunistas. Ou é viado ou comunista ou Deus sabe o quê que são. Malucos que querem tomar conta da cultura. Essa mentalidade, que está vigendo agora novamente, é que leva o povo brasileiro a não ter o desejo de um refinamento no consumo na arte.
Ao mesmo tempo que estamos perdendo políticas para a cultura, o Brasil levou, só no primeiro semestre de 2019, mais de 20 produções cinematográficas para festivais internacionais, com direito a prêmios importantes. Então, apesar de tudo isso, ainda conseguimos mostrar nossa produção lá fora. O que acha disso?
É um atestado de criatividade incontestável. Somos capazes de fazer um grande cinema, um belo cinema. Que bom que esses filmes estão indo para esse encontro internacional para que possam ser aclamados e vistos. Queria estar também com meu filme lá, mas eu, de alguma forma, não sei porque... Tenho uma certa frustração de não estar também sendo visto pelo mundo afora, mas enfim. Eu talvez só vá compreender isso depois. Não sei o que deu errado, alguma coisa deu errado, mas tudo bem. Para mim está tudo certo.
Aqui no Brasil você é um cineasta respeitado. Agora será homenageado no Cine OP. O que acha que deu errado?
Não tenho do que reclamar, eu tenho muita gratidão por esse reconhecimento, mas eu queria mais. Eu queria que essa loucura ressoasse mais no mundo. Meus filmes nunca foram para um festival com esse grau de importância, mas tudo bem. Eu não tive isso, mas tomara que os filmes que estão aí tragam isso. E um dia, quem sabe, eu posso ser visto também com esses filmes que não foram reconhecidos enquanto eu estava vivo.