LIvro traz relação profunda de Padura com Cuba | Foto: Divulgação
"Um escritor é um armazém de memórias. Escreve-se vasculhando as próprias memórias e as memórias alheias, adquiridas pelas mais diversas estratégia de apropriação. A partir daí, o romancista cria um mundo".
."A cidade é então o mercado livre do qual se nutre o armazém de memórias e de lugares simbólicos do escritor, muitas de suas referências, o local material do qual ele não pode se distanciar (e não estou falando de imediações ou distâncias apenas físicas), sob pena de perder a memória e perder tudo. Ou quase tudo".
"Havana é minha cidade e por isso pode me provocar uma mescla de pertencimento e alienação viscerais. Eu me identifico e comungo com lugares por alguma razão entranháveis – começando pelo Malecón e por meu bairro anódino da periferia aos quais posso acrescentar o Paseo del Prado, a região outrora aristocrática de El Vedado, as ruas sombrias e às vezes fétidas da Habana Vieja (colonial), os parques do bairro de La Víbora, o grande estádio de beisebol (...)
"Uma cidade são também seus sons, cheiros e cores: Jerusalém é da cor do deserto e cheira a especiarias. Amós Oz o sabe. O som de Nova York é a sirene de uma ambulância, de um carro de bombeiros, de uma patrulha policial. John dos Passos o padeceu, Paul Auster o padece. O bairro espanhol de Nápoles cheira a cáfé fresco. Roberto Saviano o apreciou. Minha Havana soa a música e carros velhos, cheira a gás e a mar, e sua cor é o azul"
Os trechos são da obra de não ficção "Água Por Todos os Lados" do escritor cubano Leonardo Padura, autor entre outros livros, de O Homem que Amava os Cachorros, romance com mais de 50 mil exemplares vendidos no Brasil. A publicação, selo da Boitempo e tradução de Monica Stahel, aborda vários temas. Entre eles, a relação profunda do escritor com Cuba, a literatura e o seu processo criativo, a paixão por beisebol e até a febre do reguetón, estilo musical que une o hip hop, salsa e música de eletrônica, com influência do funk.
EXÍLIO
O título do livro Água por Todos os Lados faz referência a um verso do poeta e ficcionista Virgilio Piñera (1912-1979), escritor dissidente do regime cubano por ser homossexual. Não foi o único a deixar Cuba. Padura na suas memórias cita outros autores que por uma razão ou outra preferiram atravessar a grande água da ilha.
'Viveram distantes por muitos anos Cirilo Villaverde, José Martí, Alejo Carpentier, Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas, Eliseo Alberto. Hoje vivem distantes Abilio Estévez, Karla Suárez, Emilio García Montiel e várias dezenas de escritores cubanos. Mas, como o fundador Heredia, nenhum deles conseguiu nem consegue ir embora completamente. A ilha e a cidade os perseguiram e perseguem em suas peregrinações", destaca.
Padura, entretanto, escolheu viver em Cuba. "Sou um escritor cubano que vive e escreve em Cuba porque não posso e não quero ser outra coisa, porque (e sempre posso dizer que apesar dos mais diversos pesares) preciso de Cuba para viver e escrever”. E se queixa das indagações frequentes dos jornalistas sobre esta opção, a qual responde: "porque sou cubano e tenho um alto senso do que esse pertencimento significa.”
É uma excelente obra para os iniciantes na trajetória literária de Padura pois ele narra fatos que marcaram sua carreira, seus gostos pessoais e, de quebra, os bastidores da criação de alguns livros. O autor também discorre da sua paixão ( e que paixão!) pelo beisebol , chamado na ilha de pelota e seus jogadores de peloteiros.
" Na esquina de casa, no pátio de uma escola, no descampado de umas pedreiras próximas, num ermo arenoso da periferia, joguei beisebol em cada momento em que foi possível fazê-lo.Com trajes improvisados ou sem eles, com luvas ou sem elas, com os tacos e as bolas que aparecessem em anos em que grandes carências impediam que se adquirissem esses implementos, meus amigos e eu nos dedicamos a jogar e a sonhar com o beisebol. Para mim, o “vicio de pelota” adquiriu proporções de verdadeira dependência", relata.
FUTEBOL E TROTSKY
Como brasileira chega a ser engraçado ver a revolta e indignação do escritor com o encantamento da nova geração com o futebol, já que o beisebol faz parte da cultura do cubano. "O fato de em becos e terrenos baldios de Havana as crianças jogarem futebol, não pelota, de sonharem em ser como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, de sofrerem pelo Real Madrid ou pelo Barça, implica uma grave chaga na espiritualidade nacional"
"Poderá chegar o ponto em que nós, cubanos, deixemos de ser jogadores de beisebol e nos tornemos jogadores de futebol (...) sem a paixão, sem o vício da pelota, a cubanía estaria renunciando a uma de suas marcas essenciais, definidoras", exagera.
O autor de obras como Hereges, A Transparência do Tempo e O Romance da Minha Vida, todos editados pela Boitempo, nesta obra conta, além de outros livros' como foi o seu percurso para escrever a obra O Homem que Amava os Cachorros, que trata, través de uma trama muito bem elaborada, do assassinato de Leon Trotsky pelo espanhol Ramon Mercader, que se exilou em Cuba, vivendo uma identidade secreta.
Padura, que pelo conjunto de sua obra recebeu o Prêmio Nacional de Literatura de Cuba, em 2012, o Princesa de Asturias, da Espanha, em 2015 e o Prêmio Internacional de Novela Histórica Barcino, em 2018 , em Água Por Todos os Lados prova mais uma vez ser um grande escritor, um crítico apurado do mundo e detentor de uma prosa apaixonante.