"Acho quintal o melhor lugar do mundo", diz a cantora
A beleza e a força do novo disco de Maria Bethânia, Meus Quintais, têm muito a ver com a beleza e a força do inesperado. Uma espécie de trindade em que conjugam-se liberdade, prazer e intuição.
"Não faço projeto nem planos. Sou um pouco guiada por uma intuição suave e normal. Para mim já é uma coisinha normal", disse ela, numa entrevista coletiva esta semana transmitida pela internet.
A cantora e intérprete, que no ano que vem vai completar 50 anos de carreira, não tinha planejado esse disco. Mas num intervalo de uma das apresentações do show Carta de Amor, que ainda corre o Brasil, teve um lampejo: "O desejo de cantar o homem do Brasil, o caboclo, o dono da terra".
Impulsionada pela ideia, surgiu um disco com uma exuberância afetiva ímpar: passa pela intimidade do fundo de casa, se enraíza na memória familiar, se expande na expressão da mestiçagem solidária e é absoluta obra de arte.
"O índio não sai da minha cabeça, está no meu sangue. Temos uma hereditariedade com os pataxós. Eu sou parda, sou misturada. Mas eles são daqui, inteirinhos, são o chão, são o Brasil. Vivo interpretando o índio, o povo do Brasil o tempo inteiro. Minha missão é esta: viver cantando e interpretando o que sinto".
Convidado a entrar naquele universo nascente, Chico César compôs duas músicas para o álbum. Em Arco da Velha Índia, traduz a cantora quando diz que ela é "corda vocal insubmissa". E em Xavante, evoca "a voz de um Brasil distante".
Mas ao contrário do que ela fez em Brasileirinho (2003), em que se embrenhou na saga emocional e imaginária da alma brasileira, Bethânia rumou em Meus Quintais para a pura intimidade.
"Acho quintal o melhor lugar do mundo. É onde se aprende tudo. A casa é a cobertura, aquele alicerce, mas o quintal é a liberdade".
Na janela do horizonte
Meus Quintais abre com uma música de Paulo Cesar Pinheiro e Dori Caymmi, Alguma Voz, em que é acompanhada pelo pianista André Mehmari.
"Esse disco é uma memória minha com meus irmãos todos. É para os meus, os da minha casa. A dedicatória de um modo geral é esta. E cantar Alguma Voz é como uma oração por todos nós. Que Deus está sempre ali na janela do horizonte, cantando, rezando, cuidando de nós".
É o primeiro disco de Maria Bethânia após a morte de sua mãe, Dona Canô, no final de dezembro de 2012. Elas aparecem juntas, numa foto do encarte, com projeto gráfico de Gringo Cardia, feita no dia em que completou 100 anos.
A presença da mãe também se faz sentir, quando Bethânia canta Lua Bonita, de Zé Martins e Zé do Norte.
"Minha mãe cantava Lua Bonita lindamente", lembra, fazendo referência ao DVD Pedrinha de Aruanda, em que a matriarca aparece cantando um trecho com Caetano.
O irmão, aliás, era com quem ela costumava brincar nas árvores do quintal da casa de Santo Amaro, em que afirma ter aprendido "absolutamente tudo". E é de onde ela parte para seus outros quintais.
"Eu vou para Santo Amaro, é normal. Sinto falta dos meus que já partiram, mas os tenho tão vivos em mim", constata.
Infância
Bem nutrida pelos devaneios do primeiro quintal e do amor de sempre, diz que não fica saudosa. "A infância carrego comigo, isso está em mim. A menina está aqui".
Um sentimento tão intenso que só pode ser a razão da força surpreendente com que ela canta neste disco.
Quem, senão a menina e sua "corda vocal insubmissa", após ver Deus cantando na janela do horizonte, sente o vento de Iansã lhe embelezando (Imbelezô Eu/Vento de Lá, de Roque Ferreira), mergulha na sedução mitológica de uma moça da água (Uma Iara, de Adriana Calcanhotto), se dobra de rir com o susto de outras crianças (Moda da Onça, de Paulo Vanzolini), ou saúda com samba as nações indígenas (Povos do Brasil, de Leandro Fregonesi)?
Esse clima e essa energia acabaram sendo partilhados pelos músicos que participam do disco, que teve criação geral de Maria Bethânia e Jorge Helder e convidados como Wagner Tiso (Dindi), o grupo Tira Poeira, a cavaquinista Luciana Rabello, o violinista João Gaspar e o percussionista Marcelo Costa, entre outros. "Em Meus Quintais, os músicos são autores, eles assinam o disco junto comigo. Foi muito divertido fazer, a gente ficou muito alegre, livre".
Contraponto
Bethânia espera usar o novo disco nas comemorações do seu cinquentenário de carreira em 2015, "como um contraponto para a vida em cena, para a vitrine que é uma cantora e a necessidade de viver em centros urbanos sofisticados".
Detalhes de peças de entalhe feitos por ela aparecem no encarte, porque pensa que têm algo de "infantil, uma inocência e um prazer, bem o jeito desse disco". É uma de suas habilidades manuais, originadas ainda quando estudou no Convento dos Humildes, onde aprendeu a bordar.
E tudo isso cabe em Meus Quintais — que é bordado e entalhe — apenas porque teve aquela intuição "suave e normal". "A menina está aqui. É ela que faz tudo, a criança. A caçula de Zezinho e Canozinha, que sou eu, está aqui. É ela que fica aprendendo tudo e ensinando a mim".