Clarindo Silva planeja eventos culturais para comemorar os 70 anos de histórias da lua boêmia
No princípio eram duas portinhas, uma mesa e infusões que espalhavam cheiros e curiosidade pelo pequeno espaço conjugado a um ferro velho. Cachaças com erva-doce, cidreira, o afrodisíaco pau-de-resposta e até cobra coral eram as bebidas que faziam a festa de guardas civis, estivadores e petroleiros em agitadas partidas de dominó.
Setenta anos se passaram e a Cantina da Lua acrescentou muitas páginas ao cardápio e à história do Pelourinho, sobretudo no que diz respeito à vida cultural da região central.
Não há quem passe pelo Terreiro de Jesus e não cumprimente a figura toda vestida de branco que guarda a Lua como um guerreiro. "Tô aqui, na resistência", responde Clarindo Silva, com a suavidade de sempre.
Em 2015, a resistência compreende uma série de atividades em comemoração aos 70 anos da casa, que vai se desdobrar ao longo dos meses e chamar a atenção para as questões essenciais do Centro Histórico.
Nesta segunda à noite, nos festejos de aniversário de Clarindo, será dada a largada na programação. Além das tradicionais apresentações musicais, a Lua vai trazer lançamentos de livros, exposições de quadros, palestras e seminários. "Para mim, é bom que todo o Pelourinho esteja bem. Se só a Cantina estiver bem, eu não estou bem", confessa o proprietário.
Clarindo Silva sublocou a Cantina da Lua em 1971 do fundador, Renato Santos. "Renato era um boêmio sonhador. Resolveu botar o bar numa época em que a lua inspirava o romantismo e os namorados".
Mas o segundo proprietário revelou-se tão sonhador quanto quem o inspirou. Chegou ao Pelourinho aos 12 anos para trabalhar como empregado doméstico no Bazar Americano (o tal ferro velho) e com muito trabalho alcançou o cargo de contador da casa.
Depois de casar-se, deixou o bazar e a reportagem policial porque não queria ser mais empregado de ninguém. Quando apareceu a proposta de arrendar o bar, ele viu muitas ideias tomarem forma.
O barulho do dominó incomodava o novo proprietário, que foi, aos poucos, acabando com a jogatina. "Meu grande saque foi vender tira-gosto. Então, escrevi numa cartolina: 'Não beba sem se alimentar' e comecei a preparar ovos coloridos, lambreta, siri e caranguejo".
Este foi o primeiro passo para atrair jornalistas, estudantes, artistas, intelectuais e transformar a Cantina da Lua no reduto boêmio do Pelourinho e concentração de sambistas como Riachão, Batatinha, Valmir Lima, Bob Lao e Tião Motorista.
"A minha vida era na Cantina da Lua. Só saía de manhã. Ali era um céu e a gente uma família, só tinha amor, alegria, satisfação. E Clarindo é o ponto alto da alegria da vida na Lua", diz Riachão, saudoso.
Paralelamente às noites de festa, a Cantina da Lua tornou-se também o local onde soluções contra o abandono da área eram pensadas.
Em 1983, Clarindo encabeçou a criação do Projeto Cultural Cantina da Lua com a perspectiva de lutar pela revitalização do Centro Histórico e preservação da memória cultural. "Trouxemos quatro ministros da cultura para denunciar a situação do Pelourinho. Entregamos ao presidente Sarney um manifesto à nação denunciando a degradação e até o Papa João Paulo II nos recebeu", conta, orgulhoso.