Keith numa homenagem recente ao guitarrista Scotty Moore
Foi um blues de Muddy Waters, que diz que "pedras que rolam não criam limo", que inspirou o nome dos Rolling Stones. E, de fato, aos 71 anos, esta parece ser a receita para o stone Keith Richards sobreviver - a despeito de todos os excessos, verdadeiros ou folclóricos, que cometera na vida e da própria lenda em torno de sua pessoa.
Mais reflexivo e menos irônico nos últimos tempos, ele diz - no recém-lançado (na Netflix) documentário Keith Richards - Under The Influence (de Morgan Neville), que gira em torno do seu também recém-lançado terceiro álbum solo, Crosseyed Heart - que não está envelhecendo, mas evoluindo.
Seja como for, o músico que outrora teria dito ao médico que se largasse as drogas morreria - quando este disse que ele morreria se não largasse as drogas - mantém a atividade em alta, como o provam o lançamento simultâneo do filme e do álbum e a própria perenidade dos Rolling Stones.
Na estrada desde que completou 50 anos, em 2012, a banda-mãe de Richards já está com o passaporte carimbado para quatro apresentações no Brasil em fevereiro de 2016 (dia 20, no Maracanã, Rio de Janeiro; dias 24 e 27, no Morumbi, São Paulo; 2 de março, no Beira-Rio, Porto Alegre).
Se o filme pode ser considerado uma versão cinematográfica da autobiografia Vida, que o guitarrista lançou em 2010, o CD Crosseyed Heart pode muito bem ser um raio X da essência musical de Keith Richards. Ele traz (como revela o título do documentário) um espectro de todas as influências que o músico recebeu ao longo da vida, com ou sem os Stones: blues, rock'n'roll, rhythm'n'blues, country, folk, reggae, funk.
Tributo
O disco já começa pagando tributo a um homem que está na raiz de toda a lenda que se construiu sobre o blues e sobre o rock nas primeiras décadas do século 20: na breve faixa-título, o stone incorpora Robert Johnson (com um violão similar ao usado por este músico quase fantasmagórico) na execução de um blues agrícola.
É o anticlímax perfeito para a explosão que vem a seguir, a rascante Heart Stopper, um rock com a pegada de guitarra que está na essência da música dos Rolling Stones - e que irá se repetir em Trouble.
Há outros rocks típicos da estirpe richardiana, como Nothing on Me, que chega perto da fronteira do hard rock, e Something for Nothing, com belo coro no refrão. Já Amnesia é groove puro, balanço e pulsação conduzindo uma letra sobre esquecimento.
A primeira balada é a lúgubre Robbed Blind, mistura de country e folk arranhada por uma pedal steel guitar de arrepiar. E há várias outras, como Suspicious, Just a Gift, Lover's Plea e Illusion, na qual Richards dueta com a cantora Norah Jones, sua parceira também na composição.
Da safra blueseira há ainda Blues in the Morning, um standard do chamado blues urbano. O tributo ao folk é praticado em Goodnight Irene, velha canção caipira de Leadbelly já gravada por Tom Waits e, mais recentemente, por Eric Clapton, enquanto o funk jamesbrowniano aparece em Substantial Damage.
Se Richards levou 23 anos entre o segundo e este terceiro álbum solo, é provável que ele não tenha plano para um quarto. E não é por outro motivo que Crosseyed Heart soa como uma espécie de autorretrato musical definitivo com o qual o músico encerraria seu legado artístico - isto, naturalmente, à parte os Rolling Stones.
Não é à toa que o álbum vem conjugado com um documentário no qual, depois de repassar toda sua trajetória - com pouca alusão às drogas e muita à música - ele esparrama-se preguiçosamente numa cadeira em casa, enquanto é beijado no rosto pela bela e loira esposa, para dizer que tudo na vida dele se resume hoje em... amor.
Conexões
Crosseyed Heart é todo inspiração, coração e coesão com os músicos que dele participam (a turma liderada pelo baterista, parceiro e produtor Steve Jordan, que já vinha participando das aventuras solo de Keith Richards) e um mosaico de tudo o que é genuíno na cultura rock.
Isto inclui sua conexão com o reggae, gênero que encantou Richards desde o início dos anos 1970, e o country, que assimilou prazerosamente na convivência com o guitarrista Gram Parsons (ex-The Byrds) desde quando gravava o álbum Sticky Fingers com os Stones. No novo CD, a referência ao reggae está na releitura de Love Overdue, de Gregory Isaacs.
Com o álbum e o filme, Keith Richards dá a impressão de querer fechar a tampa com chave de ouro, repassar para as gerações do terceiro milênio tudo aquilo que aprendeu na estrada do rock'n'roll. Mas falar em legado para as novas gerações é arriscado em se tratando de Keith, quando se vê na internet brincadeiras como "Que tipo de mundo será que vamos deixar para o Keith Richards?".
Brincadeiras à parte em relação à lendária imortalidade do stone, o próprio músico vem deixando claro nas entrevistas recentes que o tal abuso de drogas - que segundo os prognósticos deveriam tê-lo enviado para o além muitas décadas atrás - foi, na realidade, relativo a um período de tempo que também ficou há muito lá atrás.
Será que o Keith Richards de dentro das quatro paredes de sua mansão é hoje mais um senhor da geração saúde? Nem tanto assim, a julgar pelas intensas baforadas de cigarro que ele solta nos estúdios nas cenas do documentário. É apenas rock'n'roll.