"O diálogo é urgente. No entanto, as condições para que ele aconteça não estão dadas"
Em um momento de acentuada intolerância, materializada principalmente nas redes sociais, um tipo de discurso autoritário e excludente ganha cada vez mais amplitude na sociedade brasileira. Nessas situações, é fundamental que vozes robustas entrem em cena para deixar as discussões mais embasadas e menos rasteiras. É isso que faz a escritora e filósofa gaúcha Marcia Tiburi na publicação Como Conversar Com Um Fascista - Reflexões Sobre o Cotidiano Autoritário Brasileiro.
Lançada pela editora Record, a obra reúne ensaios inéditos e alguns publicados na revista Cult: todos versam sobre a natureza contemporânea do fascismo. Professora doutora em filosofia e autora de títulos como Filosofia Prática - Ética, Vida Cotidiana, Vida Virtual (2014), Marcia explora de maneira sagaz o atual cenário brasileiro. Definido por ela mesma como "uma tarefa filosófica", o livro consegue aproximar o leitor dos debates políticos porque foi construído numa linguagem simples e afastada dos academicismos.
As definições sobre a palavra fascista ainda não são tão claras para o senso comum. Você teve algum receio de como esse livro poderia ser recebido no mercado?
Eu já tinha escrito um artigo com esse título, mas ele entrou no livro de maneira reformulada. A ideia é usar o termo fascista no sentido bem coloquial. Essa é uma obra de filosofia. Não se trata de uma publicação de história ou de ciência política, mesmo que questões históricas e cientifico-políticas estejam ali colocadas. O foco principal do livro é promover reflexão. Então, o termo fascista que está no título - e a forma como o fascismo aparece na publicação - deve suscitar esse estranhamento no leitor. Eu sabia o que estava fazendo. Sabia que estava escolhendo uma palavra que ia tensionar as pessoas. Por isso, o título é uma provocação.
E por que provocar o leitor?
Porque as pessoas usam a expressão fascista de uma maneira bem genérica. Portanto, eu não queria jogar fora esse caráter. Digo isso porque é a partir desse uso que é possível fazer com que as pessoas pensem no que estão vivendo. Mas, claro que ainda me surpreendo quando vejo as pessoas vestindo a carapuça. Aplicado a um regime político ou pessoa, o fascismo é um termo pejorativo. Então, é estarrecedor para mim que as pessoas assumam esse termo como característico de si e das suas personalidades. No nosso contexto, o fascismo não é aplicado do mesmo jeito que era na Roma Antiga. Os magistrados romanos, dono do poder, faziam uso de varas (do latim fascis) para tocar o povo como se fosse gado. Mas, poderíamos dizer que existe um parentesco entre aquelas atitudes autoritárias (de uma autoridade pública) e ações que vemos hoje em dia. As pessoas talvez fiquem assustadas com a expressão porque podem lembrar do fascismo italiano nos anos 1940 ou da feição fascista que o nazismo tomou na Alemanha.
Então, o fascismo tem versões contemporâneas e atualizadas?
Essa forma autoritária retorna. Não desaparece. Não é porque o nazismo aconteceu na Alemanha dos anos 1940 que formas autoritárias de expressão pessoal e política não tenham surgido em outras épocas. O próprio século 20 é marcado por uma matança que envolve o Estado em relação às pessoas. Hoje, no Brasil, estamos vivendo uma forma insidiosa e covarde por parte de fascismo e do Estado. Me refiro ao Estado brasileiro nas formas dos governos federal, estaduais e municipais em relação a populações minoritárias. Os povos indígenas são dizimados no Brasil com profundo descaso por parte do governo. A matança dos jovens negros nas periferias das grandes cidades. O extermínio da população trans e travesti. E isso não vem à tona nos meios de comunicação de massa. Não é um exagero mencionarmos o caráter fascista como característica das formas de produção e manutenção da sociedade brasileira. Eu queria mesmo colocar as pessoas num confronto com o nosso modo de proceder e agir em relação aos outros.
A linguagem como formadora da política é outro aspecto importante do livro. Como os mecanismos da linguagem operam para excluir?
Precisamos pensar qual é o estado da nossa linguagem. É difícil talvez explicar isso de um jeito mais fácil, mas essa é a questão. Detalho isso quando coloco a minha preocupação em relação ao que chamei de empobrecimento da linguagem. Se levarmos a sério que os limites do meu mundo são limites da minha linguagem, abrimos uma porta para pensar essa questão. O empobrecimento da linguagem é o empobrecimento da política. A sociedade capitalista providencia justamente o empobrecimento da experiência e de si mesmo. Espera-se que as pessoas não se relacionem entre si. É necessário produzir a desavença, o desencontro e a anti-relação. Por isso, para fomentar esse fascismo potencial, é preciso apagar o outro: o diferente não deve existir. A personalidade autoritária - que é a posição subjetiva do fascista potencial - é formada dentro de um sistema de preconceitos. Então, o outro precisa ser negado e odiado.
E quem é esse "outro"?
É qualquer um: pessoa, cultura ou forma de viver. Inclusive, o outro pode ser o objeto de conhecimento. Por isso, a burrice do fascista. Eu sou um ser político se eu me abro a você. O outro é sempre um mistério, potência e possibilidade. O outro é alguém que me traz, como pessoa, uma novidade. Um livro ou uma língua são a mesma coisa. Essa dimensão da alteridade está apagada na perspectiva do fascista. Ele não consegue incluir o outro na sua perspectiva. Não tem abertura para o outro.
No livro, você utiliza a burrice como conceito. Aconteceu uma banalização do termo no cotidiano?
A burrice é explorada no livro como uma negação do conhecimento. A base do conhecimento de um fascista potencial é paranoica. Ou seja, ele já tem uma resposta para tudo. Ele compra ideias prontas no jornal e na televisão. Essas ideias são baratas e parecem até que são doadas. Nesse sentido, o fascista é um sujeito realmente burro porque cancelou o desejo de conhecer. Quando termos como fascista, burrice ou autoritário são utilizados no nível de caracterização de uma condição subjetiva ou coletiva, as pessoas costumam interpretá-los apenas como uma expressão de xingamento. No entanto, no livro, eu tento resgatar exatamente a condição conceitual desses elementos que se transformaram em puro jogo de ofensas no dia a dia. Várias autores na história da filosofia se ocuparam de pensar a burrice e as formas da ignorância, por exemplo. Estamos mostrando a validade conceitual de um termo que caiu no uso cotidiano e que parece ser pura violência linguística.
Você cita o diálogo como um mecanismo mais complexo que a conversa. Qual é papel dele na construção da política?
O diálogo é uma metodologia filósofica por excelência. Mas, ele também é apagado no contexto. Então, as pessoas são proibidas de conversar. Por isso mesmo surgiu o título do livro. Eu mesma via no cotidiano a impossibilidade de conversar. Dialogar é uma forma de conversação mais complexa e que implica a tentativa de se fazer compreender, se colocar no lugar do outro para compreender. Tudo isso depende de um imaginário. Eu preciso imaginar como o outro pode entender. No cotidiano, o que eu via, era uma impotência para a conversação. Até mesmo num jantar em família não é possível perguntar ou tentar entender melhor um posicionamento porque as pessoas estão com verdades e certezas na ponta da língua. É como se o ódio fosse confirmado e a expressão dele estivesse autorizada. A busca pelo diálogo precisa passar por um mínimo de posição de respeito em relação ao outro. E é isso que a gente não dispõe hoje em dia. Estamos indisponíveis para o outro. O diálogo é urgente. No entanto, as condições para que ele aconteça não estão dadas.