Arte do grafiteiro Izolag, conhecido por utilizar estêncil em grandes proporções
Incorporado pelo sistema da arte, pela universidade e por grandes marcas, o grafite equilibra-se entre a crescente profissionalização e o engajamento que vem de berço
Na carreira do grafiteiro Fabio Rocha, o Limpo, o evento mais catártico foi a abertura de sua exposição numa galeria em Berlim, em outubro de 2009. A inauguração tinha sido adiada duas vezes por ecos da crise econômica do ano anterior, e, naquele cenário de recessão, não havia como saber quantas pessoas apareceriam. Apareceram mais de duas mil, e, segundo o periódico Berliner Zeitung, "foi um antídoto para todo mundo". Seis grandes painéis e sete ilustrações em pequeno formato ocupavam o espaço da mostra. O estilo de Limpo, baiano que mantém seu estúdio em Malmö, na Suécia, há seis anos, já era assimilado por todos. Naquela exposição, no entanto, havia algo bde extremo. Influenciado pelo neorrealista Cândido Portinari, os painéis e ilustrações de Limpo exibiam, numa simbiose entre ternura e denúncia, a pobreza - homens dormindo no chão, crianças no lixo, mulheres atravessando enchentes. O teor dos trabalhos em tempos de crise, entretanto, não impediu que o artista vendesse as obras e colecionasse, já naquela noite de abertura, cartões de visita de gerentes e CEOs de marcas de roupa, sapatos e celulares: um prefácio dos próximos anos.
Falar com Limpo, hoje, requer da parte dele um malabarismo na agenda. Para o segundo semestre de 2015, por exemplo, está previsto o lançamento de uma linha de produtos da marca francesa de xampu L'Oréal com embalagens ilustradas por ele, além de um novo game da japonesa Nintendo Company, no qual Limpo grafitou o cenário do jogo. "Tenho tanto trabalho que, às vezes, até numa festa sinto que estou trabalhando", disse ele à Muito, numa entrevista por Skype, enquanto finalizava os croquis do cenário de uma premiação da rádio sueca, marcada para dezembro. "Os grafiteiros não são mais meninos iletrados; estamos muito organizados e, a meu ver, a única expressão marginal é a mente dos conservadores".
De fato, Limpo pertence a uma geração que levou o grafite para o centro. A arte originada nos guetos nova-iorquinos na década de 1970 experimenta, desde meados dos anos 1990, crescente profissionalização, com revistas e sites especializados e artistas assimilados pelo mercado (de arte ou nem tanto). Os tempos de marginalidade ficaram para trás: a estética dos muros ganhou galerias, negócios e agora é discutida em universidades e escolas.
Um levantamento inédito realizado com grafiteiros em atividade na Bahia mostra os contornos dessa expansão. No livro Grafite Salvador, que será lançado no dia 28 de novembro, a fotógrafa Carol Garcia e a socióloga Bárbara Falcón traçam um perfil da cena local, inserida num contexto de arte colaborativa e de ampla noção de como o mercado se movimenta: dos 28 artistas entrevistados, entre 2012 e 2014, folgam aqueles que se organizam em grupos, passam longas temporadas no exterior e aprimoram o pensamento sobre seus trabalhos nas universidades.
"É curioso que, ao contrário do eixo Rio-SP, em que muitos artistas têm contato com o grafite só quando entram na universidade, na Bahia, são os artistas que o levam para a academia", diz Falcón, lembrando que, embora muitos ramifiquem suas áreas de atuação, os grafiteiros permanecem engajados em essência. "É uma expressão, sobretudo, de pessoas da periferia. E, para essas pessoas, a história se repete: pegar metrô ou trem, tomar um ônibus, caminhar. Enfrentar viagens urbanas faz pensar em como a localização geográfica muda a perspectiva de si e da vida. Quanto mais afastado o bairro, mais pobreza e menos urbanização. É natural que a arte produzida por essas pessoas seja política".
Discurso
Parece ingênuo, contudo, centrar hoje as discussões sobre o grafite no ativismo das obras. Ainda que o britânico Banksy, o artista de rua mais badalado do mundo, brade contra o establishment em seus trabalhos, os grafiteiros, ao aprimorarem seus traços, agora são políticos menos pelo teor do que grafitam no muro e mais pelo que o próprio ato de grafitar um muro representa.
Se no campo da música o recado é mais direto pela via do rap, a arte de rua, encabeçada pelo grafite, assimilou um universo onírico que, ao mesmo tempo em que torna mais subjetivo o universo de cada artista, explicita uma causa macro: a apropriação do espaço urbano. Assim, trabalhos como o de Miguel Cordeiro, pioneiro ao grafitar muros de Salvador no final da década de 1970 com ações do personagem Faustino - "Faustino faz as unhas", escrevia -, representam pouco o estado atual do grafite, marcado por elaboradas composições de cor, forma e dimensões e por autores que têm o discurso do direito à cidade como motivo condutor.
"A gente tem a missão de diminuir o isolamento entre centro e periferia, tentar trazer para os jovens outras referências de pertencimento", diz Bigod, conhecido em Salvador por pintar carrancas, baiacus e sapos enormes e estilizados. À frente do coletivo Nova10Ordem, ele está sempre envolvido num projeto. Um deles é o Museu de Street Art de Salvador (Musas), antes situado no Solar do Unhão e que agora funciona na comunidade quilombola São Braz (próxima a Santo Amaro), onde artistas usam as paredes do espaço como telas. "O cotidiano embrutecido faz com que as pessoas não prestem atenção na sujeira que deixam, na cor que querem nos muros, nas grades da cidade, no tipo de lugar que têm o direito de ingressar. O grafite resiste, persiste nessa conscientização".
Foi para expandir essa noção de museu aberto - e a possibilidade de transformação que surge de um espaço assim - que Max Fonseca, grafiteiro radicado em Luanda, Angola, criou em 2012 o projeto Rua Salvador (fb.com/RuaSalvador), página no Facebook onde documenta a produção da arte de rua feita na Bahia e "potencializa o alcance dos trabalhos".
"A parte artística do grafite é a menos importante. Há uma questão de busca por voz, por identidade, por representatividade, que é decisiva", diz Max. "Qualquer um que duvide disso pode experimentar sair com uma mochila lotada de latas de spray e ver a reação das pessoas quando começar a sacá-las para pintar os muros".
Símbolo
Se o efeito político do grafite vem do contato com a rua, a classificação das obras feitas sob encomenda é ponto de divergência. "Grafite é rua, é pintar sem perguntar a ninguém", diz Rafael Vinicius, o Fael, endossado por Rodrigo Izolag: "É possível reconhecer uma estética comum nos trabalhos que se faz fora da rua, mas só dá para chamar de grafite o que está no muro".
Fael e Izolag encabeçaram, nos anos 2000, o coletivo baiano 071 Crew. Fael ganhou notoriedade por pintar a vaca, personagem que criou para expressar sua indignação ante o "abate de jovens da periferia". Izolag, que há oito anos mora no Rio, tornou-se referência em estêncil - suas obras constam na compilação Stencil History X, ao lado de artistas incensados, como Banksy, e são comercializadas pela galeria RV por valores entre R$ 7 mil e R$ 15 mil.
"Antes era comum que os grafiteiros que fizessem trabalhos comerciais colocassem pouco da sua arte neles", diz Izolag. "Mas, hoje, um grafiteiro consegue viver do que faz; não viverá do que produz na rua, mas pode viver do estilo, do traço. Há uma busca do mercado pela estética do grafite".
No artigo A cidade como obra de arte, a antropóloga francesa Marion Odangiu defende que mesmo os trabalhos expostos fora da rua podem ser classificados como grafite. Segundo ela, ao expor uma estética comum, as obras evocam "questões semelhantes". "O grafite traz de uma maneira simbólica a relação da mistura, do hibridismo, de sentimentos contraditórios de surpresa, de admiração ou de repulsa e, nos locais onde podemos encontrá-lo, no mercado ou na rua, geram sempre, no íntimo, essas reflexões", escreve.
Algo que está na base da crença de Tárcio Vasconcelos, na arte Tarcio V., um infante no mercado. Grafiteiro que nasceu e cresceu no bairro de Castelo Branco, ele começou a desenvolver trabalhos comerciais no início deste ano - ilustrará uma linha de sandálias e capas para celulares para duas empresas cariocas (por contrato, ainda não pode divulgar as marcas). "Gosto de pensar que, onde quer que você encontre o grafite, há um potencial de reflexão presente", diz ele, emendando a ressalva. "A rua é o habitat natural. É onde acontece a democracia pela arte".