O cantor Edson Gomes apresenta-se num show em Periperi
Edson Gomes não usa mais rasta, considera Bob Marley um palhaço, desconectou-se da esquerda e acha que está velho. Às vésperas de completar 60 anos, metade deles dedicada à música, seus shows provam que a vibe continua positiva
Bob Marley é um babaca". Edson Gomes crispa os lábios e demonstra entusiasmo ao sentenciar à estupidez o cânone jamaicano. Com frequência, o riso provocado em espanto às suas mais ásperas declarações parece incendiar o rosto do músico: "Veja, é meu cantor preferido no lado social. Mas, quando você busca a linha filosófica, só diz besteira. É um palhaço. E não sou apenas eu que digo isso. Quem estuda Bob Marley sabe".
O reggaeman da Bahia está à vontade no pequeno apartamento-escritório da Rua Pedro Autran, estreito beco que deságua impune na Avenida Carlos Gomes. Edson usa camisa regata verde-oliva, bermuda preta, um gasto par de chinelos e um boné vermelho, que desajeitadamente se equilibra sobre a cabeça. Dali a algumas horas vai se apresentar em um show no Pelourinho, razão pela qual saiu da cidade de São Félix, onde reside, para se entregar àquela tarde sotero letárgica.
Confortavelmente acomodado numa cadeira de mogno, às suas costas reluzem pôsteres da fase gloriosa, na década de 1990, quando fabricava aos magotes hits políticos que - naquela época ainda não se poderia supor - resistiriam ao tempo. Na mesma parede que reserva-se à sua narcisa homenagem repousa também, impávido, um enorme quadro do agora enjeitado Marley, dreadlocks chicoteando o vento. "Eu tentei me aproximar do rastafarianismo. Mas percebi que eles não meditam. Não pesquisam, não leem. Além do mais, o livro-base deles é a Bíblia. E para ler a Bíblia, não preciso de intermediários", justifica.
Em julho, o cantor completa 60 anos de vida e 30 de carreira. Embora afastado do mainstream, sua voz é habitué em cenas cotidianas de Salvador. Por estas bandas de cá, há quem sustente a inexequível possibilidade de se realizar um protesto, desde a mais banal das bandeiras ao mais valoroso dos temas, que não embalado pelos versos de "vamos, amigo, lute!". Ou passar por uma das vielas do Pelourinho e não ouvir o ruflo do "êa", ditongo consagrado nos hinos-canções do nosso 'Cliff nagô'.
"Sempre fiz música para passar uma mensagem. É diferente do axé, que nunca quis dizer nada. Eles quiseram apenas fazer fortuna, enganar as pessoas", compara. Com uma recalcitrante sinceridade, ao balzaquiano ritmo, o reggaeman faz outras considerações. "Não escuto música baiana. O que eles têm de bom é essa estrutura de gravação, distribuição e shows. Nas músicas, optam pelo vazio".
Embora ainda inflame o discurso, Edson Gomes não é mais o irascível de antes. Nos anos de sucesso, pairava sobre ele, além do galopante talento, um temperamento equino. "Ele era difícil. Parecia um pedaço de cavalo", brinca o irmão, Eddie Brown, também cantor de reggae e hoje vítima de um glaucoma que lhe custou a visão.
Próprias bandeiras
A chegada da idade moldou a índole e conteve as diatribes do mais famoso dos Gomes. A tiracolo, no combo etário, trouxe outros dois indesejados acompanhamentos. Primeiro, foram os fios brancos que invadiram sua cabeleira rastafári - e, por isso mesmo, o fizeram abdicar do estilo. Depois, o diagnóstico de uma diabetes tipo 2, que o fez mudar alimentação, estilo de vida e diminuir os shows. Se antes dedicava adoração ao reggae, hoje dá de ombros para o movimento.
Prefere encampar as próprias bandeiras, livre de amarras. Recheou o discurso militante com amparos cristãos. Desprendeu-se do selo da esquerda e do movimento negro. Tornou-se um fio indômito num cabedal rastafári de dogmas. "Já provoquei a ira de muitos militantes, pois defendo que a música deve ser para todos e não somente para o negro, o branco ou o índio. Canto coisas que tenham compromissos com minha verdade", defende. Do coldre, elege outros alvos. "Ninguém acredita na classe política e ainda temos a violência policial matando jovens de periferia, como aconteceu no Cabula", reclama o cantor, que revela ter votado em Aécio Neves (PSDB) nas últimas eleições presidenciais - "voto sempre contra quem está no poder para tirá-lo de lá", entende à sua maneira.
Os amigos creditam ao companheiro a inquietude e a promoção do reggae no Recôncavo baiano. "Só depois do sucesso de Edson virou moda usar cabelo rastafári aqui. Foi ele que fez as pessoas pregarem consciência social", diz Totonho do Facão, 56. Fomos até São Félix para comprovar a veracidade destas amoladas asseverações. Sem qualquer método formal de investigação, ao fim da gaiata incursão, foi possível assentir: somando-se a siamesa Cachoeira, cidade vizinha separada por uma ponte, é possível que seja o metro quadrado de maior afluência rastafári do Brasil.
Às bateladas, homens e mulheres com cabelos de medusa organizam-se nas ruas das cidades gêmeas pagando suas contas, buscando os filhos nas escolas, comendo maniçoba e desenvolvendo outro sem-número de atividades diárias.
Na conurbação do Recôncavo existe um bar que só toca música tributária ao estilo - que carrega o singelo nome de Bar do Reggae -, além da Orquestra Reggae Sinfônica, criada em 2012. A filarmônica é composta por 17 músicos e um maestro. Regido pela batuta de Flávio Santos, 29, toca reggae instrumental, prestando homenagens aos 'papas' do gênero. "Nossa geração foi influenciada pelo que Edson Gomes, Sine Calmon fizeram. Existe uma escola de músicos aqui que nasceu ouvindo esses caras. Criamos esse projeto para manter o legado deles", diz Santos.
À vista desta desmedida veneração, Isaque Gomes sentencia. "Meu pai se transformou no rei do reggae do Brasil", diz o primogênito do cantor, hoje com 26 anos, e a quem seu pai dedicou uma de suas canções mais famosas.
O reinado chegou a ser ameaçado antes do efetivo coroamento. Quando menino, aquele que viria a se tornar uma lenda do reggae nacional não sabia pelo que optar: futebol ou música. Edson nasceu em uma família pobre em Cachoeira. Seu nome, homônimo ao do rei Pelé, até poderia indicar leve predileção ao esporte, embora tenha origem sui generis. Foi o segundo de uma enealogia iniciada com o prefixo "Ed", uma engenhosidade do pai, o ferroviário Pedro Gomes. "Tenho uma irmã mais velha chamada Edna, depois eu. Aí vem: Edinice, Edmilson (Eddie Brown), Edmundo, Edilene, Ednalva e Edvando. E ainda teve Edvaldo, que morreu pequeno".
A razão da excentricidade Edson não sabe explicar. Já a opção pela música atribui ao descarte. "Ficava nessa de futebol e música até que me eliminaram dos babas. Um dia me disseram: 'Vá pra sua música. Aqui você não tem mais lugar'. Peguei e fui". A escalada até gravar o primeiro disco, em 1988, foi de prêmios, evasão escolar, objeção paterna, resiliência a calotes, frustrada tentativa de emplacar carreira em São Paulo e a providencial mudança de estilo.
"Samarina, Malandrinha, História do Brasil foram pensadas inicialmente como samba. Eu fazia sucesso nos anos 1970 em Cachoeira e São Félix. Mas só tocando samba". A amizade com o cantor Nengo Vieira, outro trovador do Recôncavo, trouxe a conversão para o reggae. "Fiquei doido quando ouvi aquilo pela primeira vez. Tínhamos uma vitrola velha e ficávamos ouvindo Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff. Eles cantavam em inglês e eu não entendia, mas sentia que a melodia tinha uma força de resistência", recorda.
Com o sucesso estrondoso, veio o cabelo rasta. Mas Edson prefere creditar a mudança capilar mais a um sabão em pó do que ao ícone jamaicano. É a segunda vez que faz questão de negar Marley. "Tinha um cara aqui na Bahia, Jorge Papapá, que tinha cabelo rastafári. Eu achava aquilo o máximo. Um dia lavei meu cabelo com sabão em pó e comecei a enrolar. Papapá foi o primeiro na Bahia de cabelo rasta. Eu devo ter sido um dos dez primeiros", diz, sem encobrir o orgulho. Renascido do pó, passou a usar cores alusivas à África, óculos escuros e bandanas. Posteriormente viria a maconha. Em uma noite de bebedeira, em 1985, fumou o primeiro baseado. Passou todo aquele ano sabático (e canábico) longe da música. Tinha o estranho hábito de fumar maconha lendo a Bíblia enquanto exercitava os músculos fazendo cooper no Parque de Pituaçu. Um conchavo alucinógeno-sacrossanto-esportivo que não terminaria bem.
"Ele passou esse tempo sem cantar. Atrasou sua carreira e não ganhou dinheiro", recorda Eddie Brown. A virada viria com a gravação do seu primeiro LP, Reggae Resistência. Na época, amealhou uma pequena fortuna, conseguiu furar as cercanias do reggae, mas não projetou sua imagem no altiplano da música. "O reggae sempre foi uma música marginal. Poucas vezes apareci na televisão. Minha música e minha voz fazem sucesso, mas meu rosto quase nunca aparece", desabafa.
Na praça de São Félix, o cantor destampa um garrafa que traz na bolsa e, pacientemente, faz o líquido nela contido escorrer para dentro de um copo de uísque. Dá uma talagada e se propõe a falar do futuro. "Se eu emplacar um dos meus filhos na música, eu paro. A verdade é que não tenho mais aquela mesma empolgação para cantar como tinha antes. O tempo passou e eu fiquei velho". Outro gole e mais uma confissão. "Gastei uma parte da minha vida artística numa rivalidade idiota com Sine Calmon. Disputávamos espaço e público. E tudo era bobagem", diz.
Por telefone, Sine Calmon, 49, brinca com a pretensa rixa entre os dois. "É mais ou menos o que existe hoje com Ivete Sangalo e Claudia Leitte. Ele é Vitória. Eu sou Bahia. Mas nos gostamos. Ele é uma referência como artista".
Cão de raça
Toda terça-feira, Edson Gomes comanda os amistosos da equipe Cão de Raça - seu time, que leva o mesmo nome da banda que o acompanha há anos. Ele não joga mais (por conta de uma lesão no joelho), mas é técnico e presidente da agremiação. "Hoje esse é meu vício. Não cheiro. Não fumo. Guardo parte do meu dinheiro para organizar esses babas e tomar uma com meus amigos depois do jogo".
Nosso último encontro com o cantor é no bairro de Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador. Edson está entre os convidados da prefeitura para os festejos dos 466 anos da capital. A banda Cão de Raça afina os primeiros acordes de Fogo na Babilônia. Os filhos Isaque e Jeremias estão como backing vocals. Ele entra no palco e incendeia a plateia. O povo delira. Edson não parece o cantor "velho" e "sem empolgação", como se autopenitenciou dias antes. Grita "positive vibration" e seca a garganta em nome de "Jáááááh". Provoca o cantor Pablo, do Arrocha. Diz ser o autor intelectual do termo "sofrência", cunhado, segundo ele, na música Viu, de 1988. "Eu usei a palavra para falar do sofrimento do povo. Aí o sistema se apropriou para fazer o povo se embriagar, fazer o homem ficar chorando pelos cantos e tomar veneno de rato". O povo reage com uivos de aprovação.
Um dia antes do show, pergunto qual seria a influência do 'deus maior' do reggae no repertório daquela noite: "O show vai ser de Edson Gomes". É a terceira negativa a Marley. O que não deve ser motivo de culpa, pois Pedro, sob cujo nome se edificou a Santa Igreja, também negou Cristo três vezes. E depois, ou por isso, tornou-se guardião das chaves do paraíso. Êa!