Antonio Bandeira foi um dos primeiros pesquisadores a identificar o vírus da zika, em abril deste an
Há um mês, o filho do médico infectologista Antonio Bandeira começou a ter febre, dor de cabeça, náuseas e manchas vermelhas na pele. Os sintomas eram os mesmos daqueles provocados por um vírus que o próprio Bandeira, ao lado dos médicos Gúbio Soares e Silvia Sardi, havia detectado pela primeira vez na América Latina, em abril deste ano, em Camaçari. "O diagnóstico do meu filho veio rápido. Mas a maioria dos postos de saúde na Bahia ainda não consegue fornecer a informação certa". A informação, neste caso, é a zika, que se apresentou na Bahia como epidemia. Transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo que despeja a dengue e a febre chikungunya, a zika tem um agravante: está intimamente associada à síndrome de Guillain-Barré, que pode provocar paralisia muscular. A Bahia contabilizou, nos seis primeiros meses deste ano, 45 mil casos suspeitos de dengue, 32 mil de zika e oito mil de chikungunya. "Muitas vezes, o homem pensa que está acima da natureza. Mas não está. Os vírus estão mais perto do que pensamos", diz Bandeira. Coordenador do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Aliança, em Salvador, ele fala, nesta entrevista, sobre a zika, o papel da indústria farmacêutica nacional e a próxima pandemia.
Se, por um lado, a ciência avançou, por outro, não conseguiu acabar com as epidemias virais que proliferaram na segunda metade do século passado. Por quê?
Durante muito tempo, a humanidade conviveu com epidemias isoladas em pontos específicos do mapa. Elas assolavam a Ásia e a África, por exemplo, mas não chegavam à América. O comércio cada vez mais intenso e as populações humanas se locomovendo também de forma intensa facilitaram o intercâmbio de vetores e de pessoas contaminadas. Há suspeita de que introdução do mosquito Aedes Aegypti na América Central, na década de 1970, por exemplo, tenha vindo com a importação de pneus da China.
Casos da síndrome de Guillain-Barré (SGB) têm avançado na Bahia. Muitos pacientes apresentam histórico de doenças como a zika, a dengue ou a chikungunya. Já é possível estabelecer uma relação?
Sem dúvida. Mas a primeira coisa que preciso dizer é que a dengue não provoca a quantidade de SGB que estamos tendo. Há décadas lidamos com a dengue e não assistimos a essa relação acentuada. Outra coisa: a chikungunya chegou à Bahia no ano passado e, pelo menos nos seis primeiros meses, não vimos aumento significativo. Agora, desde a entrada da zika na Bahia, há casos e mais casos de SGB. Não tenho dúvida de que a associação com a zika é forte. Além disso, há uma descrição publicada no ano passado, no jornal médico Eurosurveillance, que mostra que, quando a epidemia de zika atingiu a Polinésia Francesa, as taxas de Guillain-Barré também dispararam.
Além dessa relação numérica, existe uma explicação biológica para a ligação?
A SGB é uma doença do sistema nervoso (neuropatia), marcada pela perda da bainha de mielina (trecho das células nervosas). Ela se manifesta sob a forma de inflamação aguda dos nervos e, às vezes, das raízes nervosas. Esse estímulo é frequentemente gerado por um processo infeccioso. Agora, o que tem, efetivamente, a zika para provocar a SGB, isso ninguém ainda sabe.
O zika vírus foi detectado pela primeira vez na América Latina em moradores de Camaçari, na Bahia, em abril. Há uma explicação para a localização geográfica?
Começamos a detectar, na Bahia, desde o final do ano passado, casos do que foi batizado de "doença exantemática indeterminada", referência aos exantemas (manchas vermelhas) que surgiam nos pacientes. No início deste ano, os casos começaram a aumentar. Fui chamado pelo Hospital Santa Helena, em Camaçari, para analisar a situação. Fiquei impressionado, porque os casos vinham se avolumando e tinham sintomas diferentes dos da dengue - menos febre, muita dor articular, conjuntivite. Levantou-se a suspeita de ser o parvovírus B19, que provoca sintomas levemente semelhantes. A própria Secretaria da Saúde da Bahia chegou a reproduzir equivocadamente essa informação. Levantei a suspeita de que poderia ser outro vírus e que talvez tivesse o Aedes aegypti como vetor. Então, me propus a investigar 24 amostras de sangue de pacientes de Camaçari. Logo o zika vírus foi isolado. Isso não significa que o primeiro caso tenha acontecido lá, mas a primeira vez em que ele foi detectado na América foi através de uma amostra de sangue de um paciente de Camaçari. Outras partes do Brasil já haviam registrado casos, mas ainda sem a definição correta da doença.
O Brasil lida com a epidemia de dengue há décadas e só agora se fala em vacina. Demoramos a reconhecer o perigo?
Sim. Mas isso é resultado de uma indústria farmacêutica atrasada. O que é a indústria farmacêutica brasileira? Ela não pesquisa produtos para resolver questões reais. Os laboratórios que temos têm outra dinâmica - produzem muita pesquisa, mas não necessariamente aplicada. Nossa indústria compra o sal, embala e vende. Dependemos da indústria farmacêutica estrangeira. Isso vale também para a produção de vacinas. Acontece que a indústria internacional produz o que lhe interessa. É o Brasil que tem de resolver seu próprio mercado de doenças.
O laboratório francês Sanofi Pasteur deve lançar uma vacina contra a dengue que oferece 60,8% de proteção. É uma taxa de sucesso extremamente pequena, não?
É, mas é melhor contarmos com esta vacina do que ficarmos sem. O ideal é que a gente começasse a vacinar e continuasse buscando outras com maior potencial de cobertura.
Por que os médicos sempre dizem que o paciente está com virose, muitas vezes sem especificar a causa dos sintomas?
Há uma grande dificuldade no diagnóstico. Peguemos a Bahia como exemplo. Com os anos, conseguimos técnicas para obter diagnósticos mais precisos para a dengue. Essas técnicas deveriam estar disseminadas, sobretudo na rede pública, mas não estão. Aí, quando chegou a chikungunya e a zika, a situação se complicou. Por mais que o poder público tenha anunciado que os testes de chikungunya estão sendo feitos, não há disponibilidade na rede pública, e na área privada eles são caríssimos. Se você chegar a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Salvador e pedir um teste, você não vai fazer. No caso da zika, o diagnóstico só pode ser obtido por meio de técnicas muito específicas, que também são caras. O médico não tem o que dizer ao paciente, a não ser que ele está com virose.
Como baratear, então, os custos das técnicas de diagnóstico?
Com uma integração maior entre o poder público e os institutos de pesquisa privados. A área privada tem a agilidade de compra e venda, e o poder público pode viabilizar o negócio. Mas ele ainda é muito estanque e pouco ágil. Um exemplo dessa falta de agilidade é, justamente, a produção de vacinas e medicamentos. Se o investimento demanda muitos recursos e os resultados demoram a chegar, por que não fazer parcerias com pesquisadores de fora? Não se trata de terceirizar, mas de trazer pesquisadores para trabalharem no Brasil.
Algumas epidemias surgem e vão embora. Outras persistem por décadas. O que torna uma epidemia persistente e o que faz dela uma epidemia passageira?
Quando uma epidemia começa, 100% das pessoas estão suscetíveis. Quando o indivíduo é infectado, ele tem dois caminhos: a cura ou a morte. No caso da cura, ele desenvolve anticorpos e fica imune. À medida que isso caminha, tem-se um contingente cada vez maior de pessoas imunes. A tendência é chegar a um ponto em que todos estão imunes. Aí a epidemia vai embora. Mas por que muitas não se extinguem? Primeiro, porque incluem outros mamíferos no ciclo. A zika, por exemplo, atinge os cachorros. Se outros animais fazem parte do ciclo, o vírus se mantém. Segundo ponto: a sociedade é dinâmica, o tempo todo nascem e chegam pessoas novas.
A dinâmica da sociedade é proporcional a epidemias mais resistentes?
Exato. Caso a vacina não entre na equação de uma epidemia, a todo momento começam a aparecer indivíduos ou grupos vulneráveis.
David Quammen, autor de Spillover: animal infections and the next human pandemic (Respingamento: infecções animais e a próxima pandemia humana, em tradução livre), afirma que a recente epidemia de ebola é um "ensaio para a próxima pandemia". O senhor concorda?
Difícil dizer. Mas os vírus que chegam ao homem através dos animais costumam ser os mais devastadores. Os vírus de transmissão intimamente humana são vírus que acabam se adaptando ao ser humano. Quando os vírus que fazem ciclos em animais pulam para a população humana, a coisa se complica. O problema maior está nos animais selvagens, com os quais o homem não entrou em contato e que abrigam vírus ainda desconhecidos. Um exemplo do passado que todos já conhecemos: aquele homem que caçava chimpanzés na mata e adquiriu o vírus da Aids.