Apresentação do coletivo Coletivo Arte Marginal Salvador, que atualiza a obra "Capitães da Areia"
Coletivo Arte Marginal Salvador e grupo de arte popular A Pombagem movimentam os domingos da capital baiana com literatura, música, fotografia, teatro e outras intervenções poéticas
A Aquidabã está meio vazia. De longe, mal se vê que o já escasso movimento de domingo espera algo além dos ônibus. É preciso se aproximar. Num canto da estação, placas exibem fotografias da cidade legendadas por haikais. No outro, meninos aprendem a grafitar desenhos animados. Uma plateia em semicírculo observa a peça que se monta na hora.
Moças vestidas de preto choram por um rapaz que acabou de ser morto. O narrador da cena insere um áudio - a voz de Cid Moreira numa reportagem sobre a chacina da Candelária. O público tem meninos da mesma idade dos que foram assassinados pela polícia carioca, em 1993. Alguns seguram a mão da mãe. Entre os adultos há os que dormem ali. E eles se misturam para ver e participar da ação do coletivo Arte Marginal Salvador, que naquele dia estreava o projeto I Have a Dream: dos capitães da areia aos jovens em situação de rua.
A ideia de atualizar o texto de Jorge Amado vem se estendendo por três domingos, incluindo o de Carnaval, quando o coletivo levou palhaçaria, malabares e outras intervenções para a Fazenda Grande do Retiro. Mas voltemos à Aquidabã. Ali, o poeta, estudante de direito e mentor do "sonho", Fabrício Britto, 28, lembra que Salvador ainda é de Pedro Bala. O que separa o personagem dos anos 1930 deste que ele inventou - e jaz naquela na estação - é só o tempo. "Falar da rua hoje é falar de redução de danos, de medidas socioeducativas e de uma população que sofre com a indiferença da sociedade".
Fabrício mira atingir um território mais amplo do que local. Por isso, justifica, sua peça pode deixar de fora outra chacina, essa em Salvador, no bairro do Cabula, em 2015: "A violência vivida pelos capitães da areia, a chacina da Candelária e a do Cabula se comunicam. Dessa eu não falei, mas podemos debatê-la depois da peça".
Na praça, no muro, na rua
A palavra é a base do projeto I Have a Dream e ganha força na parceria com a biblioteca comunitária Zeferina-Beiru, que em todos esses domingos tem funcionado de forma itinerante, enchendo o chão de praças públicas com exemplares raros em livrarias de shopping. "São outras narrativas, de autores baianos ou africanos, com versões que não são contadas nas escolas", situa a voluntária Paula Regina, 26.
A cultura hip hop também é um dos pilares do grupo, com apresentações de break, rap e oficinas de grafite e estêncil. Na Aquidabã, o artista visual Devarnier Hembadoom, 42, mostrou às crianças o que gente como Banksy faz nos muros do mundo. "É uma arte livre. Qualquer imagem pode dar seu recado".
As ações são provocantes, como a mostra Cotidiano, que juntou fotógrafos locais e poetas nacionais. A museóloga e curadora Manuela Ribeiro, 29, explica: " O haikai é a poesia mais rápida, democrática". De Paulo Leminski (1944-1989), esses versos urgentes dizem mais: "Viver é superdifícil. O mais fundo está sempre na superfície".
No caso de Marie Thauront, 50, o mais fundo está nos muros. O coletivo usou fragmentos do trabalho em que ela, que é maquiadora, deu vida a personagens do grafite baiano e fotografou essas pessoas (muitas vezes os próprios grafiteiros) na frente dos muros de onde parecem sair. As fotos viraram grandes cartazes colados em lambe-lambe por viadutos e fachadas, do Centro ao Costa Azul. Foi a estes frames que se acrescentou poesia. Marie: "A rua é o lugar que devemos ocupar. Lançar nossa voz e ouvir a voz dela".
Gilucci Augusto, 30, e Erik Doria, 26, também ganharam poesia para suas fotos. As de Gilucci, sempre em preto e branco, exploram figuras urbanas e, segundo ele, refletem sua vida cigana, entre Salvador e o Recôncavo, entre a gastronomia e a fotografia. "Gosto de trabalhar com arquétipos". Já as imagens de Erick sempre partem do lugar onde ele está. Muitas são registros da Capelinha, onde mora. Ele gosta de observar a arquitetura, os vizinhos, o dia a dia. A fotografia ainda é uma dedicação recente, mas Erik já percebe no que faz a influencia do pai. "Ele era cinegrafista e eu fazia iluminação para ele. Acho que peguei muita coisa dali".
E porque muito se falou de rua e de poesia, não podemos ficar devendo a história do coletivo Arte Marginal Salvador, que começou em 2009, com Fabrício Britto e os amigos declamando versos e vendendo livretos de poetas da periferia de Salvador em tudo quanto era sinaleira da cidade. De tanto ouvir que eram pombos-sujos, decidiram criar também o grupo de arte popular A Pombagem. No próximo domingo, o grupo encerra o projeto do sonho, com os artistas que dele participaram, contando o que acharam da experiência. Na mesma ocasião, haverá o lançamento de um livro escrito por jovens em situação de rua, com direito a sessão de autógrafo dos autores. Para quem não esteve em nenhum dos três momentos anteriores, a chance é única.
I Have a Dream: dos capitães de areia aos jovens em situação de rua | Encerramento: domingo, dia 21/2 Sebo Porto dos Livros - Porto da Barra14h, de graça