A baiana Valdinéia Soriano foi eleita a melhor atriz no Festival de Brasília
Margarida perdeu o filho, não sabe mais estar no mundo. O percurso de reaprender a viver move o filme baiano Café com Canela, que foi eleito pelo júri popular o melhor longa-metragem entre as produções exibidas no Festival de Brasília, um dos mais prestigiados do país. O longa também rendeu a Ary Rosa o prêmio de melhor roteiro e a Valdinéia Soriano, a Margarida da história, o troféu de melhor atriz. Acostumada a pensar sua trajetória artística no coletivo, Valdinéia alegrou-se com as possibilidades de o reconhecimento nacional trazer mais oportunidades para si e também para o Bando do Teatro Olodum, que integra desde a fundação, em 1990. Além de atuar nos espetáculos da companhia, ela trabalha como produtora e há pouco tempo passou a integrar o colegiado coordenador do grupo. “A gente vem buscando uma parceria com o cinema preto”, conta Val, como todos a chamam. O desejo volta a tomar corpo no longa Ilha, da Rosza Filmes, mesma produtora de Café com Canela. O filme está sendo gravado em Ilha Grande de Camamu e terá cinco atores do Bando no elenco, incluindo Valdinéia, naturalmente. Ela já atuou em produções nacionais, como Jenipapo e Tim Maia, mas sente que nos sets locais “o carinho e a paixão são mais visíveis”. A televisão é que ainda não descobriu seu talento, ausência estendida a muitos atores negros. “Tudo é bem fechado. A TV, mais ainda. E a TV é cruel, porque dita formas, modas, belezas”.
Em que momento da sua vida profissional esse prêmio chega?
É um momento de amadurecimento. Só agora parei para pensar que já tenho 30 anos de carreira! É também uma fase de transição forte para o meu grupo, o Bando de Teatro Olodum. E é um momento em que o cinema nordestino dá um salto. A própria receptividade do público no festival [de Brasília] foi incrível. A faculdade de Cachoeira foi muito criticada no primeiro momento, quando surgiu. E agora os frutos estão vindo. Acho que são momentos especiais. E agora, além de tudo, há esse fortalecimento da mulher negra, da mulher, de modo geral. Estou recebendo tantas mensagens que não estou conseguindo responder a todo mundo. Existia um desejo pulsando para isso. É uma porta que se abre, sabe? Para quem veio antes de mim e para quem virá depois. Uma amiga comentou, e eu concordo: aquela menina, adolescente, negra, que está fazendo teatro lá na Liberdade, num colégio público, vai ver uma história como essa e pensar que é possível.
Você falava de uma transição no Bando de Teatro Olodum. Que mudanças são essas?
A gente agora meio que assumiu produções, mesmo. Criamos um colegiado que está coordenando o Bando. Até o momento, a gente tinha Márcio [Meirelles] e Chica [Carelli] na direção, além de Zebrinha, que é o coordenador artístico. E agora criamos um colegiado coordenador. As decisões continuam sendo tomadas no coletivo, mas o colegiado acaba filtrando as coisas até chegar ao coletivo. É mais um compromisso. Além de mim, tem Jorge Washington, Cássia Valle e Fábio Santana. Somos nós quatro. É mais uma responsabilidade, também. Outra mudança no grupo é que a gente vem buscando uma parceria com o cinema preto, com o cinema negro, e isso vai se fortalecendo com o pessoal da Rosza Filmes. Em Café com Canela, além de mim, tem Arlete Dias, que também é do Bando. E agora vou participar de uma outra produção deles, que é Ilha. Do Bando seremos cinco nesse filme. Acaba sendo de verdade um estreitar de relações. O Bando de Teatro Olodum vêm ganhando um terreno também na sétima arte. Acho que isso é muito legal.
Você construiu uma carreira sólida no Bando com trabalhos de forte cunho político. Como foi fazer Café com Canela, que fala sobre perdas, sobre afeto? É uma mãe que perde o filho, essa dor maior...
Ave Maria, eu só penso no meu... Sobre essa questão da perda, da mulher negra hoje, perdendo seus filhos negros... Apesar de o filme não tratar especificamente disso, isso está ali embutido, também. Eu acabei de fazer Erê, que é um espetáculo que fala sobre mães perdendo filhos, que faz uma referência à chacina do Cabula, às chacinas em geral. Tinha um outro vigor, diferente de Café com Canela, mas a sensação fica. Essa experiência que eu vivi no palco acabou sendo também experiência para a tela. São momentos que a gente vive. Não foge muito do que é a realidade do Bando, porque a gente acredita também no afeto. E é tão lindo você poder falar do povo negro e falar do amor. Café com Canela tem uma família negra, a família de Violeta, e Violeta tem dois filhos, um marido, um homem negro, carinhoso. Quer dizer, isso é muito lindo de a gente ver. A gente não necessariamente tem que falar só das angústias, a gente pode falar disso também. E falar bem, com propriedade. E Margarida, minha personagem, ao contrário, é a enclausurada, a que sofre, a que está em depressão. A perda do filho para ela... Ela se tranca nela. É uma forma de sofrimento, é uma outra forma de questionar, também, eu acho.
Quando perguntei sobre isso, você imediatamente falou no seu filho. Acha que esse sentimento de angústia é algo que acompanha as mães negras e seus filhos negros daqui de Salvador?
É tão gritante, sabe? A sensação que eu tenho, para a gente que é mãe negra, é que é um pouco mais pesado. Meu filho tem 17 anos, está cursando duas universidades. Tem uma que é à noite. Eu não vou ficar falando, mas eu sofro com isso... Ele vai de metrô, a gente mora perto da estação. Teoricamente, não é uma coisa complicada. Ele pega o metrô, que o deixa perto da faculdade. Mas como a gente vive assim, à flor da pele, o meu medo é sempre esse... Se ele chega um pouco mais tarde, já quero passar uma mensagem, já fico tensa. E aí ele chega, super de boa. De boa, bicho, sem nem imaginar as coisas loucas que eu passo. A mulher negra vive muito isso, de verdade. Infelizmente. É nosso filho que vai descer na blitz.
É brutal porque a gente pode pensar em avanços relacionados aos direitos da população negra, mas não houve qualquer alteração nos números de jovens negros mortos. Dos jovens assassinados no Brasil, 77% são negros, de acordo com o último Mapa da Violência.
É impressionante, porque piorou, né? Não mudou nada. É uma tensão constante. E não é assim: ‘Porra, o povo preto inventa’... A gente não inventa. Os dados são terríveis.
Ilha, esse outro filme que você vai gravar agora, é sobre o quê?
O filme também é deles, da mesma equipe, da Rosza Filmes, e eu quero falar o quanto eles são profissionais incríveis! São jovens, todos saíram do curso de cinema de Cachoeira. Ary Rosa e Glenda Nicácio são mineiros e estão há oito anos em Cachoeira. É um outro longa, que vai ser filmado em Ilha Grande. A gente vai para Camamu de carro e depois pega uma lancha e chega à ilha para filmar. O roteiro conta a história de dois cineastas... E aí... Não sei se posso contar (ri).
Você atuou em filmes nacionais como Jenipapo e Tim Maia. Que diferenças sente ao trabalhar aqui, num set local?
A sensação que tenho é a de que aqui o carinho e a paixão são mais visíveis. Não vou nem dizer que são maiores. Por isso, eu me envolvi com os meninos... A gente estava produzindo as Terças Pretas aqui no Vila. Eu vim resolver um problema de luz e aí o telefone tocou. O convite para Café com Canela foi assim. Eu nem entendi direito o que era, só falei: claro, está ótimo, eu topo! Depois foi que eu vim entender... O que me chamou a atenção no telefone foi que o filme seria rodado em Cachoeira. Quando passei a viver o processo, me apaixonei. Tem essa paixão, essa intensidade visível. Isso é muito lindo. Eu fiquei um mês e meio entre Cachoeira e Muritiba. Eles fizeram uma preparação de elenco e aí pensaram se eu iria participar ou não... E eu falei: não, gente, vou fazer tudo! Fiz tudo que tinha que ser feito. Já estava me sentindo contemplada com tudo isso, com esse processo. E a gente fez uma exibição linda no Cine Cachoeira, antes de ir para o Festival de Brasília.
Você já fez alguns trabalhos no cinema, e outros tantos nos palcos. Televisão você fez menos. É um mundo mais difícil de ingressar? Ainda é mais fechada aos atores negros?
Eu acho que tudo é bem fechado. A TV, mais ainda. E a TV é cruel, porque dita formas, modas, belezas, e aí existe essa preocupação... Mas o teatro que eu faço é um teatro específico, que hoje até abrange mais público, mas que durante algum tempo foi um teatro específico para uma plateia específica. No cinema, a gente também vem galgando [espaço], mas ainda não é o que a gente quer. Eu estava vendo essa novela, A Força do Querer, e tem Sabiá, que é o bandidaço do morro. Jonathan Azevedo está incrível! As cenas que vejo, acho maravilhosas. Mas imediatamente você pensa: porra, mas bota logo o preto para fazer a zorra do marginal? Imediatamente você não vê o trabalho do ator, você pensa: porra, que merda, é um preto fazendo o dono do morro. Mas aí eu volto. É um preto fazendo o dono do morro, mas fazendo bem. A gente tem que questionar mesmo, claro, mas, em alguns momentos, isso faz com que você não olhe a qualidade do trabalho daquele ator. Isso é cruel.
E é importante que Café com Canela dê tanta subjetividade a personagens negros, respondendo de alguma forma à crítica constante de que os personagens negros no audiovisual brasileiro de modo geral são rasos, ocupam papéis pontuais.
Pois é. Nessa mesma novela, tem uma negra linda, Dandara [Mariana], que faz a Marilda, superbonita, uma atriz ótima, mas é uma personagem que não uma família, não tem filho, não tem marido, não tem mãe, não tem nada. Ela saiu não sei de onde, não tem ninguém. O Café com Canela tem uma outra história. Há uma profundidade para a trajetória dos personagens. Há um casal gay e ele não está ali por acaso. Nenhum personagem está.
Você também trabalha como produtora do Bando. Já vi você falar em outras entrevistas de que falta patrocínio para a cultura negra. Isso tem melhorado nos últimos anos?
Pô, não acho que houve avanços, não, infelizmente. A gente comemorou os 20 anos do Cabaré da Rrrrraça, um espetáculo que viajou muito, foi para fora do país, e a gente não conseguiu um patrocínio. A gente contou com apoios maravilhosos, mas patrocínio mesmo... Não teve nenhum. Tenho uma amiga que diz que sou Poliana, mas às vezes eu fico pensando assim: será que a gente não está cavando no lugar certo, batendo nas portas certas? Porque não é possível que uma companhia como o Bando, um grupo sólido... Não é que a gente seja incrível, mas, depois de tanto tempo junto, tem que ter construído alguma coisa! E como é que um trabalho sólido desses às vezes não passa em edital público? Leva o projeto para uma empresa, e o projeto não agrada? É engraçado, porque Lázaro [Ramos] fala: ‘Ah, pode usar meu nome!’. E às vezes a gente usa realmente o nome de Lazinho, de [Érico] Brás... Mas isso não tinha que ser necessário! Espero que esse prêmio também abra portas, para mim, como atriz, e para o meu grupo. Ainda me incomoda muito essa corrida atrás de recursos. Você bota dez projetos, e aí dois são aprovados. Que bom que são, mas poderiam ser mais! A gente está fazendo agora [o festival] A Cena Tá Preta, que foi contemplado pela Caixa Cultural. Vai ser agora em outubro. E também fomos contemplados com a circulação de Áfricas. Vamos para Brasília e Fortaleza. É bacana, é. Mas para A Cena Tá Preta, por exemplo, seriam 36 passagens, e a gente só conseguiu cinco. Vamos fazer, vai ser lindo, mas é assim... É sempre muito difícil, muito sofrido mesmo.
Você falava que alguma menina que esteja fazendo teatro hoje pode te ter como exemplo. Quais eram as suas inspirações quando você estava lá menina fazendo teatro?
Ah, muitas, muitas. Tinha e tenho uma paixão muito grande por Zezé Mota. Ela é referência para muita atriz negra. Lembro muito dela fazendo Xica da Silva. E também Chica Xavier, que é incrível. Por muito tempo, a gente acabou vendo Chica fazendo sempre a empregada, mas era um rosto conhecido. E quando eu era mais jovem amava ver Nara Gil em Armação Ilimitada. Ela tinha um cabelo cortado assim em v.o., quadradinho, e minha mãe obviamente não deixava, porque eu tinha que espichar o cabelo. Tinha também um comercial da Tang que eu adorava, com Cinthya Rachel. Alguma delas eu vi numa época em que nem me imaginava atriz, só me sentia representada ali. Hoje eu sei o que é essa palavra.
E quando foi que você começou a querer ser atriz?
Estava estudando ainda, tipo segundo ano, e a aula de educação artística era geometria. Só que entrou uma professora que passou a dar aulas de teatro. E aí você podia escolher, um ou outro. E eu fui para o teatro para fugir da geometria, que era um saco (ri). Depois fui estudar teatro no Senac, no Pelourinho, escondida de minha mãe, que achava o Pelourinho péssimo... Fiquei uns quatro, cinco anos lá e depois participei da audição para o Bando. Nessa época, eu já dava aulas numa escola, porque fiz magistério. Minha mãe obviamente queria que eu fizesse magistério. Mas, com as viagens com o Bando, acabou que não deu mais para conciliar, e aí saí da escola. Hoje, minha mãe é minha maior fã. Ela já me ligou várias vezes para perguntar como é mesmo o nome do festival, porque tem que contar para as amigas...
Essa militância que o Bando traz muito fortemente você já carregava antes, de alguma forma?
Não, a militância eu construí no Bando. Antes de entrar para o grupo, eu nunca tinha pensado em discriminação. Aqui, aprendi o que é conscientização racial. O Bando tem uma função muito grande na vida da gente, não só de formar atores e atrizes, mas de formar mulheres e homens negros. Eu não sei que atriz e que tipo de mulher negra eu seria sem o Bando na minha vida. É pelo Bando e para o Bando.