Gilson Jorge | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
O engenheiro civil Luís Edmundo Campos fala sobre o risco de rompimento de barragens na Bahia
Para se obter apenas cinco gramas de ouro, uma mineradora tem que escavar ao menos uma tonelada do solo. Uma vez feita a extração, aplica-se mercúrio sobre uma quantidade ínfima do que foi retirado, para burilar o metal precioso, e todo aquele monte de resíduos descartados é acumulado em uma barragem de rejeitos que, depois de décadas, pode se romper e avançar sobre cidades e rios. Fora o fato de que no tratamento do minério de ferro não se utiliza o letal mercúrio, que provoca a morte de peixes e outras espécies, o processo que garante as matérias-primas para celulares, carros e geladeiras repete o mesmo padrão que provocou as tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, com a vasta destruição da natureza e a morte de 289 pessoas. A Muito conversou com o presidente do Crea-BA, o engenheiro civil Luís Edmundo Campos, para entender até que ponto desastres como esses podem ser evitados e os riscos de rompimento de barragens na Bahia, estado que avança na produção mineral em cidades como Jacobina, Caetité, Nordestina e Sento Sé. Esta última, por sinal, está se preparando para receber um milionário investimento da anglo-australiana Colomi, que vai extrair minério de ferro perto do Lago de Sobradinho. Promessa de desenvolvimento e empregos para a região mais pobre do País, mas que vem acompanhada de uma enorme intervenção no meio ambiente.
Depois das tragédias de Mariana e Brumadinho, Minas Gerais e a Vale voltam ao noticiário por causa da barragem de Barão de Cocais. Por quanto mais tempo viveremos essa tensão por causa do rompimento de barragens?
Estamos vivendo um momento em que a sociedade pensa que há um problema de engenharia. Há falta de engenharia. Essa parte de gestão, de licitações, tem deixado a engenharia de lado e está levando a essa situação que a gente está vivendo, infelizmente, nesse momento. Eu espero que com isso se repense e se dê o valor devido à engenharia. A gente está vendo a possibilidade de ruptura de uma barragem, não por uma ruptura da barragem em si; existe uma cava, que normalmente é feita de forma mais ousada para extrair o minério, e essa cava está com possibilidade de ruptura do talude, que, se essa ruptura for brusca, pode criar abalos sísmicos que disparam um processo na barragem de rejeitos.
O senhor mencionou a falta de engenharia e a falta de gestão. No caso de Brumadinho, havia pareceres condenando a estrutura, mas os técnicos emitiram um laudo liberando a barragem. O que os conselhos federal e estadual de engenharia podem fazer para evitar que isso se repita?
O trabalho do conselho sempre é lutar pelo exercício da profissão com ética. Nesse caso, eu fiquei muito triste quando vi a informação de que o profissional disse que foi obrigado a assinar. É difícil falar isso hoje com o desemprego, mas a ética profissional diz que você não deve se sujeitar a nenhuma imposição de gestores superiores, já que você é o responsável. Então, a gente tem que colocar para os profissionais que eles não se submetam a essa situação de ir contra o seu princípio técnico. A técnica tem que estar acima de qualquer coisa.
Como está a situação das barragens na Bahia?
No final do ano passado, nós fizemos uma reunião de inspetores quando saiu o relatório da ANA (Agência Nacional de Águas), que falava em 10 barragens em risco na Bahia. Nós tentamos fazer um seminário imediatamente naquele período e não conseguimos porque tivemos que envolver os diversos atores, a própria ANA, o Inema e diversos proprietários das barragens para transmitir à sociedade as reais condições. Fizemos o seminário no dia 29 de janeiro na Escola Politécnica da Ufba. Não conseguimos fazer antes porque as pessoas estavam em período de férias. O seminário aconteceu logo depois da tragédia em Brumadinho [quatro dias após], e nós não tínhamos informações precisas. A gente observou, por exemplo, no relatório da ANA sobre as barragens da Bahia que era uma estatística um pouco... distorcida. A Bahia é o estado que tem o maior número de barragens. Verdade. Mas a Bahia foi um estado que fez o seu dever de casa, cadastrou as barragens. Muitos estados não cadastraram suas barragens ainda. Então, aparecia a Bahia como um estado de destaque de barragens com problemas, simplesmente porque a Bahia alimentou os dados da ANA com as barragens que tinham, não necessariamente, riscos de ruptura. Uma barragem que não tem laudo de segurança está insegura? Não necessariamente. Há alguma coisa errada porque deveria haver o laudo de segurança. Mas a inexistência do laudo não diz que a barragem vai romper. No entanto, os órgãos públicos colocam a barragem em uma situação de risco. O que foi observado naquele momento é que as barragens da Bahia não estavam com tanto risco do jeito como foi transmitido de haver possibilidade de ruptura. Diante do episódio de Brumadinho, a gente promoveu um outro evento com a nossa Câmara de Geominas junto com a Escola Politécnica para discutir sobre barragens de rejeitos. Pelo que foi exposto, a gente está bem, entre aspas, tranquilo no estado da Bahia porque as barragens não estavam parecidas com aquelas que romperam, que eram feitas com os próprios resíduos. Essas barragens são mais baratas, mas são mais inseguras. E aqui todas apresentavam uma situação mais, entre aspas, confortável. Mas a gente tem que ficar atento. Porque em qualquer obra a gente pode ter problemas. Principalmente obras que envolvem barramento. Mesmo nessas de rejeitos, que são resíduos da mineração, elas vão acumular também água de chuva. Com chuvas muito intensas, você pode ter um transbordamento. Então, sempre tem alguma coisa que a gente precisa ficar atento.
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A gente tem que colocar para os profissionais que eles não se submetam à situação de ir contra o seu princípio técnico
Luís Edmundo Campos
Mas, então, a gente pode dizer que não há qualquer barragem em risco na Bahia…
Eu não posso afirmar isso porque nós não fizemos um estudo. Com base no que as empresas transmitiram nos seminários e que foi comprovado pelos órgãos de controle, temos certa tranquilidade. Mas não chegamos a fazer nenhum estudo para poder afirmar que as barragens estão todas seguras. Acredito nesses órgãos de controle; principalmente depois desses eventos, acho que nenhum técnico vai ser irresponsável de dizer que uma barragem é segura não estando segura.
Essa inspeção é feita com que periodicidade?
Anualmente, eles têm que fazer uma avaliação e alimentar quem centraliza os dados, a ANA, mas as barragens de mineração são de responsabilidade de ANM (Agência Nacional de Mineração), antigo DNPM.
Quando houve o rompimento da barragem de Brumadinho, criou-se a expectativa de que em algum momento os rejeitos atingissem o rio São Francisco e logo depois alcançassem o território baiano. Pensando em futuros episódios, há alguma providência que se possa tomar nesses casos, em termos de engenharia, para evitar que isso aconteça?
É difícil se fazer isso. Imagine o seguinte: tem o rompimento de uma barragem e vem um caldo, um líquido denso que, quanto maior a quantidade, mais rápido ele chega. Mas quando você chega perto de um lago, de uma barragem, essa força de transporte diminui. É diferente você ter um rio correndo com aquilo ali e você ter um lago, que amortece aquele material e começa a sedimentar mais. É muito pouco provável que ele ultrapasse uma barragem para chegar do outro lado porque o próprio formato do lago amortece. Há muita desinformação. Falava-se muito que em Brumadinho tinha um problema de transporte de metais pesados, mercúrio, etc. O tratamento de minério de ferro não usa mercúrio. Se existe contaminação nos rios de Minas é porque eles estão contaminados, não foi o derramamento de Brumadinho que levou. Você começa a ouvir um monte de coisas que, às vezes, as pessoas vão colocando informações que... são verdadeiras, mas não tanto. Essa contaminação nos rios de Minas já existia por exploração anterior até mesmo de ouro e de outros metais.
A Bahia está em um momento de grande expansão na exploração mineral. Recentemente, foi anunciado um grande investimento de uma mineradora, a Colomi, em Sento Sé. Ali bem perto do Lago de Sobradinho. Esses empreendimentos que estão chegando têm uma tecnologia mais segura que torne mais difícil o rompimento de barragens?
Algumas coisas estão mudando bastante após esses rompimentos, um outro tipo de tratamento. Infelizmente, é desse jeito que as novas tecnologias vão chegando. Cada vez que acontece um fato você vai repensar porque é um método ainda tradicional. Há métodos mais modernos, mas são métodos mais caros. Muitas vezes, quando se vai pensar em determinadas explorações, inviabiliza-se do ponto de vista econômico. Principalmente se o preço mundial do minério naquele momento não for muito viável.
Mas é dever do Estado dar segurança…
Sim, você não pode expor... dizer, ah, como o preço está tal, vou fazer uma obra inadequada. Isso não existe. Não deveria existir. Você deveria fazer tudo para dar segurança. Uma obra de engenharia não é uma obra para romper. Os prédios no Rio de Janeiro, o viaduto em São Paulo, são casos de falta de manutenção. A gente não tem o hábito. Não vou dizer só o governo. O pessoal em casa não gosta muito de dar manutenção nos nossos prédios. Se tiver que pagar uma cota extra para fazer manutenção... não é uma cultura normal do brasileiro.
Uma empresa chamada CDE apresentou, recentemente, em Belo Horizonte, uma tecnologia que explora ao máximo o material e promete eliminar os resíduos…
É muito difícil você dizer que vai eliminar os resíduos. Para se ter uma ideia, em uma tonelada que se escavar você sabe o quanto você tira de ouro?
Cem gramas?
Se você tirar muito são cinco gramas. O que você vai fazer com aquele material? Muitas vezes, em um outro momento, você pode explorar e tirar um outro minério. Mas dizer que vai eliminar os resíduos... isso seria o ideal. Mas, infelizmente, não vejo essa possibilidade. As pessoas aproveitam o minério de ferro para fazer pavimentação, casas ou blocos, etc. Bom, vamos aproveitar. Mas é muito volume [de resíduos] . E o que se gasta de transporte hoje em dia com o preço da gasolina inviabiliza que você compre o material em outro lugar porque é mais barato. O que interessa para você é o preço-custo aqui. Se o preço for inviável, eu não consigo fazer. A gente tem que repensar um pouco. A mineração é uma coisa ruim de um lado, mas boa do outro. Melhora muito a qualidade de vida das pessoas, o município cresce. Aí a sociedade tem que decidir o que quer. O progresso com essas desvantagens ou se ela prefere não ter progresso. Não dá para ser as duas coisas. As pessoas querem ter dinheiro, trabalho, etc. e não querem ter qualquer tipo de poluição.
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A mineração é ruim de um lado, mas boa do outro. Melhora
a qualidade de vida. A sociedade tem que decidir o que quer
Luís Edmundo Campos
Até porque a sociedade não tem dado pistas de que vai abrir mão do uso de aço, de ouro…
Eu quero deixar de ter meu computador, ar-condicionado, minha geladeira? Abro mão de tudo isso? A gente quer ter tudo isso, mas não quer ter o impacto ambiental. Isso não combina. Mas também não é fazer de qualquer jeito, temos que buscar um processo que tenha sustentabilidade. Cada vez que a sociedade pressionar, as empresas vão ter que diminuir seu lucro para investir mais no tratamento. O resíduo é como se fosse um esgoto. Você investe muito no esgoto? Imagine o que é uma empresa como a Vale. Não estou querendo, aqui, defendê-la. Mas em qualquer país do mundo uma empresa dessas tinha quebrado. Olha a quantidade de multas que ela está recebendo. O desgaste da empresa no mercado internacional... um dos maiores desastres ambientais da história. É um baque muito grande. Então, as empresas vão ter que pensar nisso. Mais ou menos como ocorria com o trabalhador que antes era descartável. Hoje você tem um processo de segurança no trabalho, de dar EPI [equipamento de proteção individual] Antigamente, quando se tinha um acidente encostava-se o trabalhador pelo INSS e pronto. Hoje, não é mais assim. O INSS vai checar se houve imperícia, tratar o paciente e mandar a conta para a empresa.
Coincidência ou não, os grandes desastres da Vale aconteceram após a privatização… É possível dizer que quando a empresa era estatal tinha mais cuidado com os processos?
É difícil afirmar isso. Muitas dessas barragens foram feitas no tempo que ela ainda era estatal. Você não está pegando uma barragem que foi construída após a privatização. Há necessidade também de a gente ter mais informação sobre esse material que foi descartado. Precisamos ter mais conhecimento.
Mas o senhor falou que o problema não era engenharia e, sim, de manutenção. Talvez se a empresa fosse estatal e não tivesse tanta pressão por lucros o funcionário não se sentisse obrigado a assinar um laudo falso…
Não sei dizer... É difícil colocar isso. Eu não entendo muito de política. Mas acho que o estado tem que investir mais em coisas essenciais, como educação, saúde, segurança. Há um tempo atrás, quando a gente não tinha condições de explorar, podia ser estatal. Mas a gente tem que ver também o seguinte: essas empresas quando eram estatais não davam esse lucro todo, até porque o lucro sumia por outras coisas. A gente via o desperdício que tinha. Não é possível que uma empresa que era estatal, de uma para outra comece a dar lucro como empresa privada. Isso mostra que era questão de gestão, que os recursos não eram aplicados para os devidos fins. Acho que algumas coisas têm que ser privatizadas e outras não. Pegar uma parte dessa privatização e jogar para o benefício social. Você imagina o lucro que essas empresas estão dando. Antigamente, ficava dentro dela mesma. Estamos passando por uma crise de saúde, segurança, educação. Não estou entrando no mérito político, mas a gente vê as notícias sobre filas em hospitais, pessoas que não conseguem ser atendidas.
Quanto aos royalties da mineração, o então presidente Michel Temer assinou no ano passado um decreto que estabeleceu 15% dos royalties para os municípios não produtores, 60% para os municípios produtores, 15% para os estados e 10% para a União. Considera essa equação razoável?
Não tenho como precisar se essa é a distribuição mais justa. Há pouco tempo, eu estava em Guanambi e as pessoas estavam reclamando da questão da implantação da Bamin. A barragem, se tiver algum problema, vai atingir Guanambi. É justo que o município que tem a jazida receba todos os benefícios e os outros que correm risco não recebam nada? É uma coisa para se pensar. Não é só uma questão de receber dinheiro. O ideal é que não tenha problemas. Como a questão dos royalties do petróleo no Rio de Janeiro. É justo a gente bancar a Petrobras para perfurar, pesquisar tudo aquilo e na hora que conseguir o Rio de Janeiro levar tudo? O dinheiro usado até tirar o petróleo saiu de onde? Foi gasto pela nação.
De volta à questão ambiental, o governo federal manifestou-se algumas vezes, por meio do presidente e também do ministro do Meio Ambiente, no sentido de que há um ambientalismo xiita no Brasil. Não há o risco de que se flexibilize mais a legislação para favorecer as mineradoras?
Antigamente, as coisas eram feitas sem tanta preocupação. Estradas eram abertas de qualquer jeito. Vieram pressões dos ambientalistas que, às vezes, eram excessivas, mas que foram necessárias para barrar e chegar a um ponto de equilíbrio. Tem que haver equilíbrio.