D. Flor veio pra florir aquele ambiente de cadeiras marcadas por faixas de distanciamento social | Ilustração: Túlio Carapiá
As portas do elevador do subsolo do hospital, no setor de oncologia e radioterapia, se abriram. Ela chegou toda arrumada, baixinha, magra, estilo elegante, pele negra, óculos de grau, cabelos grisalhos presos para trás, num coque com uma presilha daquelas que têm um pintinho.
Acho que deve ter passado um pouco de alfazema para pentear e com mais um pouco de quantidade nas mãos passou no pescoço – se eu pudesse sentir o cheiro, seria com certeza de perfume de alfazema e rosas, mas minha máscara não deixou. Vestido combinando com a bolsa, deu praticamente um pulo pra fora e falou: “Cheguei! Pensaram que eu não vinha?”.
As duas atendentes logo riram e bem antes de chegar até o balcão deu tempo de resumir o porquê do seu atraso: “Cheguei aqui nas mãos de Deus mesmo. Que calor é esse em Salvador? Oito da manhã e o sol de meio-dia. Uma hora no ponto esperando o ônibus!”.
Nem deu tempo de olhar muito pra ela e pensar “de onde teria vindo?”, de conseguir vê-la entre a sua máscara de proteção e os óculos, porque ela prontamente finalizou sua entrada triunfal com um xeque-mate: “Mas a gente tem é que agradecer, né? Estou com 81 anos, são 30 anos em sala de aula e o governo ainda tirando meu salário”.
Acelerada, ela entrou no atendimento. Eu parei.
Entre ela e minha imaginação o mundo rodou. Deveria ter vindo de um bairro próximo, caso contrário falaria da demora no trânsito. Aliás, pela pegada, pode ter vindo dos bairros mais distantes do hospital, que fica localizado em “avenida chique” de Salvador. A vida não está fácil pra ninguém, mas vejam só, ela estava ali falando para sala de espera que tira leite de pedra.
Em meio à segunda onda da Covid que chegou em Salvador, vou chamá-la de D. Flor, a senhora que chega de ônibus sozinha, depois de uma hora no ponto, depois de 81 anos de vida, depois do sol das 8 da Bahia, depois de pentear os cabelos e cuidadosamente se arrumar, depois de 30 anos de sala de aula de colégio público com salário e aposentadoria que, só com sua chegada já, dava pra ver que não condiz com ela, e ainda com câncer seguindo para sua sessão de radioterapia e que agradece a Deus sempre.
Uma chegada rápida com tantos fatos sociais: o câncer como uma doença que ainda atinge tantas e tantas pessoas, a pandemia, a questão do transporte público em Salvador que tanto deixa a desejar, tantas professoras aposentadas, ou não, com tantas histórias parecidas, tanta fé que move o povo, tanta resiliência, tanta resistência, tanta força, tanta felicidade. D. Flor veio pra florir aquele ambiente de cadeiras marcadas por faixas de distanciamento social. Veio pra nos dizer que não é que as pessoas não tenham problemas, ou que os problemas não devam ser vivenciados, ou que exista uma fórmula de tratá-los. Não, ela veio dizer que a vida vale a pena e assim devemos agradecer a possibilidade de viver.
Que sua volta pra casa seja mais rápida, que seu tratamento continue a lhe dar a esperança na vida, que a vida seja cheia de flores, que seja sempre perfume e alegria a espelhar. Vai, D. Flor, segue para ser esperança e enche de energia as salas de espera.
*Sociólogo e escritor