Grimaldo: SNI foi centro de difamação na ditadura
O Serviço Nacional de Informações (SNI), agência de espionagem e monitoramento do regime militar, promoveu no início dos anos 80, na última fase da ditadura, sob o governo do presidente João Baptista Figueiredo, uma ação direcionada aos jornais baianos visando desmoralizar o clero progressista, em especial os seguidores da Teologia da Libertação e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A estratégia procurou preencher as "lacunas" que a censura imposta aos órgãos de comunicação deixava passar em forma de entrevistas de bispos e cardeais que combatiam a ditadura. É que os militares temiam censurá-los ostensivamente pelo desgaste internacional que isso poderia provocar.
Batizada de "Operação Igreja", a ação consistiu em enviar correspondência de leitores fictícios para jornais de Salvador e Aracaju em que criticavam os religiosos progressistas e elogiavam os conservadores, que apoiavam o regime. O material foi descoberto no Arquivo Público Nacional do Rio de Janeiro, pelo historiador Grimaldo Carneiro Zachariadhes, mestre em história pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) que coordena o Nerm - Núcleo de Estudos do Regime Militar.
"Descobri a 'Operação Igreja' a partir das minhas pesquisas sobre a ditadura militar na Bahia realizadas nos arquivos do Sudeste. Foi um achado. Porque está provado nesta documentação como as entidades da ditadura utilizavam de meios inescrupulosos para atacar aqueles que entendiam como seus inimigos. Estamos falando de uma organização governamental - o SNI agência Bahia - onde seus funcionários falsificavam documentos escrevendo cartas com nomes fictícios, enviadas aos jornais baianos, atacando membros das igreja católica e protestante, na tentativa de desmoralizar seus integrantes para gerar um clima de revolta da sociedade contra eles", disse o pesquisador.

Primeira página do relatório da "Operação Igreja"; trecho do relatório da "Operação Igreja", do SNI, item Origem
"Enfraquecer"
No formulário com papel timbrado do SNI - Agência de Salvador, o documento denominado "Encaminhamento 0008/320/ASV/80", de 22 de dezembro de 1980, detalha a operacionalização e os objetivos da "Operação Igreja". No item "Objetivos Visados", diz: "Enfraquecer as alas progressistas de ambas as igrejas [Católica e Protestante]; Conscientizar o povo do mal que vem causando o trabalho de revanchismo social, em detrimento da pregação do Evangelho, mormente por parte de religiosos de nacionalidade alienígena".
O SNI queria "minimizar o desgaste do governo em suas divergências com o clero católico".
Seus arapongas se gabam de ter obtido êxito na empreitada, informando que as cartas foram publicadas nos principais jornais de Salvador e Aracaju, teriam gerado editoriais favoráveis ao governo, pronunciamentos de autoridades eclesiásticas e políticas e artigos de "escritores nacionais".
O relatório informa ainda que 57 cartas foram expedidas nas três fases da operação. Na parte final, o escriba da SNI também se jacta do custo-benefício da operação. "Essa agência, através de um trabalho modesto e econômico, porém de relativa eficácia, confeccionou dezenas de cartas descaracterizadas, que foram enviadas às redações dos jornais dos dois estados, sob sua área de atuação, no intuito de tentar neutralizar, enfraquecer e desacreditar a 'ala progressista' das igrejas católica e protestante, em especial a primeira, obtendo, por conseguinte, o apoio da população, através de um trabalho de conscientização, demonstrando com dados concretos que, em resposta, foi manifestado por cartas, de conteúdo semelhante ao empregado por essa repartição, além de editoriais, artigos, pronunciamentos de autoridades eclesiásticas e políticas e notas de rodapé até em jornal de oposição".
Num outro documento do SNI, de 15 de fevereiro de 1982, dois anos depois, os funcionários do órgão se referem à "Operação Igreja" e mostram como era possível se utilizar da imprensa a favor do governo, através do "aproveitamento dos espaços que os órgãos de imprensa colocam à disposição dos seus leitores (Cartas à Redação, Escreve o Leitor etc.) para, de maneira sutil e inteligente, veicular matérias em prol do governo, rebater artigos publicados por elementos adversos (conhecidos esquerdistas, clero progressista etc.) e restabelecer a verdade dos fatos".
Diante dessa descoberta, o historiador Grimaldo Zachariadhes acredita que o SNI foi o maior "centro de informações difamantes do planeta".
*Leia a segunda parte desta reportagem na edição desta segunda-feira, 8.